Enquanto Isso | George Pérez, passionate

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Enquanto Isso | George Pérez, passionate

O passional, o fervoroso, o difícil, o putaço e o apaixonado

Omelete
1 min de leitura
13.05.2022, às 14H50.
Atualizada em 13.05.2022, ÀS 16H16

George Pérez era passionate. É a palavra que eu mais encontro nos obituários: Pérez era passionate pelos quadrinhos, passionate pelos super-heróis da Marvel e da DC, passionate pelos fãs, era um cara passionate pela vida. Traduzem muito como “apaixonado”. O que não está errado, mas pode passar uma impressão incompleta.

A pessoa passionate é a que tem amor irracional por aquilo pela qual ela é passionate. Quando estamos apaixonados, as chances de fazermos besteira são grandes. Tem a ver com as outras traduções de passionate que você encontra no dicionário: ardente, fervoroso, exaltado, impetuoso, passional. Pérez era tudo isso. E uma vez eu vi o Pérez tão passionate que só consegui traduzir como putaço.

 

De The New Teen Titans n. 38 (1984)

George Pérez, você já sabe, faleceu na última sexta-feira aos 67 anos. O falecimento foi divulgado no sábado. Em dezembro, ele comunicou aos fãs que tinha câncer terminal, entre seis a doze meses de vida, e que não ia fazer tratamento. Preferia ficar esse tempo com a família e com os fãs. E ficou.

Pérez “assistiu de maneira privilegiada ao próprio velório”, resumiu o jornalista Marcelo Soares. Nestes cinco meses, todas as homenagens que se costuma fazer quando um grande artista morre foram feitas com Pérez vivo. Ele estava lá, sentindo o carinho de cada fã e lendo a mensagem de cada grande nome dos quadrinhos dizendo o quanto o inspirou. Ele pôde ver as tradicionais páginas de despedida a grandes colaboradores que Marvel e DC costumam fazer – mas nunca tinham feito para um autor vivo.

As duas grandes editoras de super-heróis entraram em acordo para uma nova edição de Liga da Justiça versus Vingadores, o cross-over desenhado por Pérez que as duas não reeditavam há catorze anos – mesmo com fãs pedindo. O resultado foi aquém do esperado: tiragem muito reduzida e pouca distribuição, mas o motivo foi pressa. DC e Marvel queriam que ele visse a nova edição em vida. Ele viu.

Conheço três livros sobre a carreira de Pérez. Um saiu no Brasil e eu traduzi: Mestres Modernos: George Pérez, de Eric Nolen-Weathington (editora Marsupial). É uma longa entrevista com o homem, assim como é George Pérez: Storyteller, de Christopher Lawrence, inédito por aqui. No ano passado saiu lá fora The Marvel Art of George Pérez, um desses livrões de arte em capa dura, que faz uma longa retrospectiva da carreira, magnificamente ilustrada, em texto de Jess Harrold.

Nenhum dos livros tem como contornar o Pérez passionate quando você pode passionate traduzir como “belicoso”. Pérez entrava numa série, brigava com roteirista ou com editor, saía da série; entrava em outra, brigava de novo, saía. E repetia.

Às vezes a briga era com a editora inteira, e aí ele pulava de Marvel para DC ou de DC para Marvel. Ficava em uma enquanto estava de mal com a outra. Passava anos na amiguinha da vez, brigava e voltava da outra para a uma.

O porquê das brigas? Porque ele era passionate. Não gostava do jeito como estavam lidando com os personagens, não aceitava que se fizesse alguma coisa com os fãs, não queria saber da insistência em cumprir prazos às custas da sua passion por encher as páginas de detalhe. 

E às vezes porque ele se enchia o saco. Um dos casos mais famosos em que Pérez se encheu o saco foi Desafio Infinito, a minissérie/megassaga que hoje é mais conhecida por inspirar Vingadores: Guerra Infinita. (Foi de lá que veio Thanos estalando os dedos.)

Pérez estava trabalhando com a DC Comics. A Marvel veio com a proposta de Desafio Infinito e, digamos assim, sacos de ouro. Pérez topou. A DC revidou, dizendo que Pérez tinha obrigação contratual de trabalhar na saga deles daquele ano, Guerra dos Deuses. Pérez resolveu encarar as duas ao mesmo tempo.

Ele fez a Guerra da DC a contragosto e o Desafio da Marvel, inicialmente, com gosto. Até que também começou a desgostar de Desafio e largou a minissérie antes do fim.

“Pensando depois, quando vi os royalties que entraram pelas primeiras edições [de Desafio Infinito], não foi uma decisão muito esperta”, Pérez diz em Mestres Modernos. Era a época de vagas rechonchudas no mercado de quadrinhos, com especulação a mil e edições que vendiam perto do milhão. “Meu comportamento petulante deve ter me custado dezenas de milhares de dólares.”

O comportamento também lhe rendeu alguns anos em que Marvel e DC se recusaram a chamá-lo para projetos importantes. Pérez, o passionate, ficou traduzido como “difícil”.

(Curiosamente, em Mestres Modernos e Storyteller, Pérez conta que largou Desafio Infinito porque não estava curtindo o roteiro arrastado de Jim Starlin, e o fato de que a saga ia seguir em Guerra Infinita e Cruzada Infinita, quem sabe além. Em Marvel Art of George Pérez, porém, só se diz que ele largou Desafio porque a DC o obrigou a fazer Guerra dos Deuses ao mesmo tempo e ele não deu conta das duas; o último livro foi editado pela própria Marvel, né.)

Pérez por Claudio Mor para o projeto fiqdegeorgeperez.tumblr.com

Em 2013, conheci Pérez em pessoa durante o Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte, o FIQ. Eu estava lá a trabalho, como intérprete do homem e de outros estrangeiros.

Pérez estava de tapa-olho, resultado de complicações de saúde (ele tinha diabetes mellitus) e cirurgias. Fora isso, vigor invejável. Você não vai encontrar uma foto de fã brasileiro no FIQ 2013 que não tenha Pérez com um sorriso genuíno.

Também foi num desses dias de FIQ que vi o Pérez genuinamente putaço.

Um dos momentos em que eu seria seu intérprete era a mesa-redonda “DC Comics”, com participação de Geoff Johns, Ivan Reis, Joe Prado e outros. Eu e Pérez chegamos antes de todo mundo e eu fiquei encarregado de explicar ou lembrá-lo qual era o assunto da mesa. Ele não gostou.

Eram os primeiros tempos pós-Novos 52. Pérez tinha participado da reorganização da DC em 2011. Escreveu e desenhou seis edições de Superman, entre outros projetos, saiu indignado com a interferência editorial e com os rumos da editora, nunca mais trabalhou para eles.

Ardré Ornelas, George 'Nick Fury' Pérez, eu e Daniel HDR no FIQ 2013 (em outra atividade do evento, não na que ele ficou putaço)

Assim que nos sentamos, ele me explicou, com uma expressão nada contente, que não estava à vontade. “Eles vão falar justamente de tudo com que eu não concordo, de tudo que me levou a ir embora!”, me dizia o homem de tapa-olho. Passionate, não num bom sentido.

Eu, o reles intérprete, já conhecia toda a história, mas não tinha muito o que fazer. Não sei se chamei alguém da organização ou se eles se tocaram. Sei que, em questão de minutos, Ivan Freitas da Costa – hoje um dos cabeças da CCXP, na época colaborador na organização do FIQ – apareceu, trocou duas palavras de simpatia com Pérez e Pérez não participou da mesa redonda “DC Comics”. Crise resolvida.

Eu continuei ali para interpretar Geoff Johns e um editor da DC muito chato, meio showman, cujo nome é melhor não lembrar. Lembro que ele perguntava pro público: “Estão curtindo Novos 52, galera?!?” e a galera respondia: “Nãããão!” Não precisei interpretar a galera para o gringo editor.

Pérez, enquanto isso, circulava pelo FiQ, dando autógrafos e tirando fotos, sorrindo de novo. Passionate de apaixonado.

De Avengers #1, 1998

Tem também o Pérez passionate-ardoroso pelos colegas. Ainda no início dos anos 1980, quando ele e Marv Wolfman reformularam os Novos Titãs e tiraram a DC do buraco, uma renegociação de contrato garantiu aos dois participação nos lucros (a tal da equity) que lhes renderia pelo resto da vida.

Toda participação de Ciborgue, Ravena, Estelar e outros em desenhos animados, filmes, séries, bonecos etc. pinga centavos nas contas dos dois autores há mais de trinta anos. Numa entrevista do ano passado, Pérez disse que foi graças a contratos como estes que ele conseguiu se aposentar bem.

Ele aprendeu que, com a devida negociação, um autor pode conseguir vantagens que a maioria dos quadrinistas não tem. E não usou esse aprendizado só para si. Quando a Marvel quis que ele voltasse aos Vingadores em meados dos anos 1990, na iniciativa “Heróis Retornam” – em seguida ao desastre “Heróis Renascem” –, Pérez e seu advogado conseguiram benefícios sem precedentes na Marvel para todos os autores envolvidos em “Retornam”.

Circula entre autores que Pérez queria que a Marvel pagasse royalties aos autores por publicação internacional. Ou seja, os quadrinhos com o nome de Pérez publicados no Brasil, na China, na Alemanha e onde quer que fosse também renderiam para o autor. A editora ia topar, mas Pérez só aceitava se o contrato valesse para todos os autores. A Marvel não aceitou essa cláusula – e até hoje não paga royalty internacional a ninguém. Mas foi a manobra de Pérez e advogado para conseguir outras vantagens.

“Eu não fui inteirado das negociações. Só usufrui dos resultados”, Kurt Busiek me contou via Twitter no último fim de semana. Ele também disse que o acordo que saiu da negociação foi “excelente”. Os detalhes são confidenciais.

Busiek foi o roteirista parceiro de Pérez em Vingadores, um dos projetos em que Pérez ficou anos sem brigar com ninguém. Eles repetiram a parceria em Liga da Justiça vs. Vingadores.

A mesma Liga da Justiça vs. Vingadores que, este ano, na republicação especial, teve todo seu lucro dirigido à Hero Initiative, organização da qual Pérez foi um dos fundadores e que arrecada grana para ajudar quadrinistas em aperto financeiro.

Há quem pense que a republicação do cross-over ajudou a pagar o tratamento do câncer de Pérez. Na verdade, foi para o fundo que ajudará vários autores da sua idade, quem sabe em situação pior.

Nos livros sobre Pérez, também são frequentes as histórias de páginas que lhe exigiram dias de olho colado nos detalhes de cada máscara, cada emblema no peito, cada expressão facial. Noites em branco na prancheta para cumprir o prazo daquela HQ que ele faria mais rápido se, quem sabe, fosse menos detalhista.

Em Hulk: Futuro Imperfeito, no início dos anos 1990, os editores sugeriram que Pérez aceitasse ajuda para entregar tudo no prazo. Nem que fosse só na arte-final. Ele, passionate, recusou.

“Passei três dias sem dormir para entregar a HQ no prazo”, ele conta em Mestres Modernos. “Foi tão pesado que, depois, minha esposa chegou em casa e me encontrou deitado na poltrona em frente à TV, apagado. Ela teve que insistir até eu acordar. Achou que eu tinha sofrido um ataque cardíaco.”

Quando Busiek lhe perguntou quais personagens queria desenhar naquela volta aos Vingadores, Pérez respondeu: “Todos.” Eles cumpriram o combinado. Quando fizeram Liga da Justiça vs. Vingadores, foram mais longe: é difícil achar um personagem do universo das equipes que não tenha dado as caras. Passionate.

Na entrevista ao Newsarama de fins do ano passado, depois de anunciar seu câncer terminal, Pérez declarou: “Eu consegui fazer tudo que quis da vida desde criança. Faço gibi há 45 anos e não tive que apunhalar ninguém pelas costas. Não tenho um desafeto no mercado nem no mundo. O fato de eu ter conseguido fazer o que eu amo e me expressar como artista é uma benção.”

E também: “O conselho que eu dou aos meus colegas é nunca tratar essas bençãos como uma coisa natural. Você se dar conta de quanta satisfação os outros tiram do seu trabalho… tem alguns que você vai ver, outros que nunca. Mas você tem que ser grato.”

Passionate, em todos os bons sentidos.

VIRANDO PÁGINAS

Em maio de 1987, exatamente há 35 anos, a Editora Abril estava publicando Crise nas Infinitas Terras a toque de caixa, dispersa por várias séries da DC. No mesmo mês, saíram capítulos em Super-Homem n. 35, Superamigos n. 24 e Superpowers n. 5. Todos por Marv Wolfman e George Pérez, os dois no ápice.

Eu tinha sete anos e li um desses capítulos sem noção alguma de que era um capítulo e que seguia uma ordem. Só sei que, mesmo perdido na história, tinha achado aquela tensão, aquele monte de cores e aquela pilha de personagens vendo o universo acabar a leitura mais sensacional da minha vida (sete anos) e que eu precisava ler o resto.

É o que eu procuro nos gibis até hoje. Às vezes encontro.

UMAS CAPAS

Marvel Fanfare n. 10, 1983.

 

New Teen Titans n. 3, 1983.

Crisis on Infinite Earths n. 1, 1985.

Wonder Woman n. 13, 1988.

The New Titans n. 61, 1989.

Mighty Mouse n. 4, 1991.

Ultraforce/Avengers e Avengers/Ultraforce, 1995.

UMAS PÁGINAS

De Avengers Finale (2005), com roteiro de Brian Michael Bendis, arte-final de Mike Perkins e cores de Brian Reber.

(o)

Sobre o autor

Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato. Também é autor do livro Balões de Pensamento – textos para pensar quadrinhos.

Sobre a coluna

Toda sexta-feira (ou quase toda), virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.

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(c) Érico Assis

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