Enquanto Isso | Quadrinho não é cultura?

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Enquanto Isso | Quadrinho não é cultura?

O "Vale Mangá", quadrinhos com milhões de acessos e milhões de vendas, Eisner, editores e Alan Moore

30.07.2021, às 14H45.
Atualizada em 30.07.2021, ÀS 19H59

A manchete do New York Times desta quarta-feira foi a seguinte “França deu 350 dólares para adolescentes gastarem em cultura. Eles compram quadrinhos.” Teve gente que se emputeceu com a chamada. Parece que tem um “mas” entre uma frase e outra: era pra gastarem em cultura, mas gastaram em gibi.

É o que a matéria diz? Mais ou menos. O que aconteceu foi que o governo francês criou um app, o Pass Culture, que dá 300 euros (ou 350 dólares, ou 1800 reais) para todos os franceses de 18 anos gastarem em 8.000 livrarias, lojas de discos, museus, cinemas e casas de shows credenciados. Um investimento público para estimular o setor cultural e estimular os adolescentes a consumir cultura. 

No que o pessoal de 18 anos mais gastou seus 300 euros? Em mangá.

“Uma menina saiu daqui com 43 mangás”, disse o dono de uma livraria ao jornal Le Figaro, no início de junho. O “Vale Cultura” começou a valer em 18 de maio e em seguida a imprensa o batizou de “Vale Mangá”.

A matéria do Times traz outros dados. Três em cada quatro compras via Pass Culture foram de livros, e dois em cada três desses livros foram mangás. Há aproximadamente 825 mil franceses se beneficiando do Pass Culture e eles podem gastar seus 300 euros em até dois anos.

Na França, um tankobon custa entre 6 e 15 euros. No país que já tem uma tradição fortíssima e orgulhosa de produção e leitura de quadrinho nacional, o quadrinho japonês ganha espaço sério desde a década de 1990. As vendas voltaram a ganhar impulso durante a pandemia – como aconteceu nos EUA e, provavelmente, no Brasil (onde não se tem dados). Com o “Vale Mangá”, estouraram. Uma reportagem deste mês no Le Monde diz que os mangás já representam 48% do mercado de quadrinhos francês.

No Twitter, Aurélien Breeden, autor da matéria no Times, tentou se explicar a quem se emputeceu com o título. Diz que ama todo tipo de quadrinho e não queria falar mal de mangá. A matéria, de fato, dá voz a gente que acha que dar dinheiro para adolescentes comprarem cultura – a cultura que eles quiserem – é positivo. O governo francês defende essa ideia.

De outro lado, a matéria também encontrou críticos que acham que dar dinheiro para adolescentes comprarem mais daquilo que já compram é desperdício de recurso público.

Um dos entrevistados, professor de economia da cultura, diz que “adolescentes não precisam de estímulo para ver o último filme da Marvel”. Mas também releva: “você pode entrar na cultura coreana pelo K-Pop e aí descobre que existe o cinema coreano, a literatura coreana, pintores, compositores.” Mas ele não acha que o Culture Pass vai atingir o objetivo nobre de promover “obras que exigem mais [do consumidor] em termos artísticos”.

Donos de livrarias, de lojas de discos e adolescentes, é óbvio, estão todos contentes com a grana e as restrições mínimas quanto a onde gastar seus 300 euros.

O governo deve investir 80 milhões de euros (quase R$ 500 milhões) com o Pass Culture este ano. Talvez o dobro no ano que vem. Não é nada perto do orçamento anual do Ministério da Cultura francês: € 4 bilhões. E o presidente Emmanuel Macron conta com os votos dos adolescentes na eleição do ano que vem…

LOOK BACK

Você não precisa nem de um euro para ler “Look Back”, HQ de Tatsuki Fujimoto (Chainsaw Man) que a Shueisha colocou na internet há duas semanas. E é um dos grandes quadrinhos do ano.

É a história de duas aspirantes a mangaká desde a adolescência. Também tem relação com uma tragédia real ocorrida em Kyoto há dois anos – não clique se não quiser spoiler.

O mangá foi postado exatamente no dia do aniversário da tragédia. Em 24 horas, segundo a Shueisha, já tinha sido acessado por três milhões de leitores. Dá para ler em inglês aqui.

Aliás, se você ainda não leu, leia a matéria aqui do lado, de Fábio Garcia, sobre o histórico curto mas curioso de Chainsaw Man no Brasil

HOMEM-CÃO, DE NOVO

Mas, voltando às vendas – e voltando ao pouco falado Homem-Cão, provavelmente quadrinho mais vendido no planeta.

A Publishers Weekly informa que quadrinhos tiveram uma subida de 178,5% em vendas de exemplares no primeiro semestre de 2021. Dog-Man: Mothering Heights, décimo volume da série de Dav Pilkey, puxou a categoria vendendo 903 mil exemplares em quatro meses. Em março, mês do lançamento, ele foi o livro mais vendido dos EUA em qualquer categoria.

Aqui, a série sai pela Companhia das Letrinhas. O oitavo volume, Latiu-22, está em pré-venda para setembro.

Mangás também vão muito bem nos EUA. A editora Viz diz que volumes de My Hero Academia, Demon Slayer e Attack on Titan vendem por volta dos 80 mil exemplares. Assim como na França, a demanda por mangás cresceu assustadoramente durante a pandemia, e as vendas só não acompanharam porque as gráficas não estavam trabalhando com toda capacidade – em função da mesma pandemia.

Já falei que no Brasil não temos dados? No Brasil não temos dados.

EISNER

Apesar de não ter nenhum quadrinista brasileiro entre os concorrentes, o Prêmio Eisner 2021 foi interessante para os leitores brasileiros: muitos dos premiados já saíram, estão saindo ou estão por sair no Brasil. Talvez seja sinal de que as editoras brasileiras estão mais rápidas em trazer o material norte-americano bem comentado.

Pulp, a melhor graphic novel inédita, de Ed Brubaker e Sean Phillips, saiu pela Mino na semana da premiação.

A Solidão de um Quadrinho sem Fim, de Adrian Tomine, levou os troféus de melhor quadrinho biográfico e melhor design de publicação, e já tinha saído aqui no ano passado pela Nemo – com o mesmo design premiado da original.

Bowie: Stardust, Rayguns & Moonage Daydreams, que valeu melhor artista a Mike Allred, saiu no início de 2020 pela Panini. Laura Allred, esposa de Mike, levou o troféu de melhor colorista por Bowie e por Robô Raio-X, que está em pré-venda no Catarse pela editora Skript.

Kent State, melhor obra baseada em fatos, por Derf Backderf, tem previsão para setembro pela Veneta. A mesma editora também anunciou para este ano Crisis Zone, de Simon Hanselmann, melhor webcomic no Eisner 2021.

A “melhor nova série”, a Viúva Negra de Kelly Thompson e Elena Casagrande, deve estar por chegar pela Panini. A mesma editora já confirmou que lança Superman Smashes the Klan, de Gene Luen Yang e Gurihiru, em dezembro. O Batman de James Tynion IV – melhor roteirista – já está saindo na Bat-mensal da Panini desde o início do ano.

Mas o verdadeiro motivo para o Eisner de Tynion IV, Department of Truth (com Martin Simmonds), ainda não foi anunciada por ninguém aqui. Remina e Venus in the Blind Spot, que valeram dois troféus a Junji Ito, também não têm editora confirmada no Brasil, apesar de Ito estar em alta no país. Ninguém vai apostar em Usagi Yojimbo, de Stan Sakai, que já soma DEZ Eisners e vai ter animação na Netflix?

E eu juro que não combinei com ninguém do Eisner pra reforçar a recomendação que fiz na semana passada: Jimmy Olsen, o Amigo do Superman ganhou dois prêmios: melhor minissérie e melhor escritor a Matt Fraction.

EDITORES NO PLÁSTICO

As editoras brasileiras, aliás, estão se antenando para a “guerra” por títulos estrangeiros. É uma das coisas recorrentes na rodada de entrevistas que o canal Fora do Plástico fez com quinze editores durante o mês de julho.

Juntando todas – a última, com Emilio Fraia da Quadrinhos na Cia., acontece hoje –, dá para construir uma grande reportagem sobre o estado do mercado nacional de HQ em 2021.

Apesar de todos terem medo do que vem por aí com a instabilidade do dólar e com o aumento dos preços de gráfica, o astral é positivo. Todos estão contentes com o impulso nas vendas durante a pandemia e, apesar de obviamente não revelarem o passo a passo, contam um pouco do seu jeito e filosofia para escolher títulos estrangeiros ou autores nacionais.

Vale a pena também ouvir causos de bastidores do André Conti (Todavia), as declarações para criar inimigos de Thiago Ferreira (Comix Zone) e Rogério de Campos (Veneta), ou como a Figura, representada por Rodrigo Rosa, construiu a relação de confiança com os leitores.

Para assistir ao arquivo de lives, você paga a partir de R$ 5 mensais no Apoie-se do Fora do Plástico.

ALAN MOORE ESTÁ VACINADO

A notícia é só essa. (Obrigado, André Valente.)

"Papai levou a segunda agulhada hoje", diz Leah Moore. "Ontem à noite alguém me contou de um casal, os dois de trinta e poucos anos. Os dois morreram de covid *no intervalo de uma semana*, deixando a filha de 11 anos órfã. Por eles, por ela, pelo papai ou por mim, por favor: vacine-se."

P.S.: A notícia era só essa até a editora Aleph anunciar, via Twitter, que vai publicar os novos trabalhos de literatura do barbudo vacinado. Falei deles numa coluna de abril.

VIRANDO PÁGINAS

Dylan Dog estreou no Brasil há 30 anos, em agosto de 1991. Foi em série própria, pela editora Record, cinco anos depois de estrear na Itália. O detetive do sobrenatural teve publicação intermitente no Brasil, mas atualmente está bem servido com duas séries semi-mensais pela editora Mythos.

Legends n. 1, primeira edição da saga da DC Comics, saiu nos EUA em 5 de agosto de 1986, há 35 anos. Com roteiro de John Ostrander e desenhos de John Byrne, a minissérie ficaria marcada por lançar o novo Esquadrão Suicida e dar a base para a Liga da Justiça Internacional. Foi relançada várias vezes no Brasil, a última na Coleção DC de Graphic Novels da Eaglemoss.

A Wizard Brasil estreou em agosto de 1996, há 25 anos, pela Editora Globo. Licenciada da revista norte-americana criada em 1991, a edição nacional traduzia matérias da gringa e tinha conteúdo exclusivo, a começar por capas de Roger Cruz e outros. Durou 15 edições, depois teve versões pelas editoras Hangar 18 e Panini.

Bakuman, de Tsugumi Ohba e Takeshi Obata, chegou ao Brasil pela editora JBC em agosto de 2011, há dez anos. A história da trajetória de dois mangakás foi publicada aqui em 20 volumes, até 2013.

UMA CAPA

De Mickey et l’Océan Perdu, por Silvio Camboni, com cores de Gaspard Yvan e Jessica Bodart. A Panini anunciou para este ano no Brasil. Falei da segunda graphic novel por Camboni e o roteirista Denis-Pierre Filippi com Mickey e companhia aqui, no ano passado.

UMA PÁGINA

Teve homem feito chorando – conforme depoimentos aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e inclusive meu – com a história de Daniel Warren Johnson (Mulher-Maravilha: Terra Morta) em Superman: Red & Blue n. 5, lançada este mês lá fora. Chama-se “Generations”, tem só oito páginas e devia entrar pro cânone de grandes histórias do azulão. Compre digital aqui. E feliz Dia dos Pais antecipado.

CINQUENTA

Na prática, foram 51 colunas, pois eu comecei com a número zero, em julho do ano passado. Mas, oficialmente, com a edição de hoje, a coluna completa 50 edições. Muito obrigado a todo mundo que lê, comenta, a quem mostra para os outros e a todos que já contribuíram com entrevistas, notícias e opiniões. Enquanto isso, nesse meio tempo, entrementes, apesar de tudo, a gente segue em frente.

 

(o)

Sobre o autor

Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato e autor do livro Balões de Pensamento.

Sobre a coluna

Toda sexta-feira (ou quase toda), virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.

#49 - San Diego é hoje

#48 - Robson Rocha, um condado, risografia e Cão Raivoso

#47 - A revolução dos quadrinhos em 1990

#46 - Um clássico POC

#45 - Eisner não é Oscar

#44 - A fazendinha Guará

#43 - Kentaro Miura, o karôshi e a privacidade

#42 - A maratona de Alison Bechdel, Laerte esgotada, crocodilos

#41 - Os quadrinhos são fazendinhas

#40 - Webtoons, os quadrinhos mais lidos do mundo

#39 - Como escolher o que comprar

#38 - Popeye, brasileiros na França e Soldado Invernal

#37 - Desculpe, vou falar de NFTs

#36 - Que as lojas de quadrinhos não fiquem na saudade

#35 - Por que a Marvel sacudiu o mercado ontem

#34 - Um quadrinista brasileiro e um golpe internacional

#33 - WandaVision foi puro suco de John Byrne

#32 - Biografia de Stan Lee tem publicação garantida no Brasil

#31 - Sem filme, McFarlane aposta no Spawnverso

#30 - HQ dá solução sobrenatural para meninos de rua

#29 - O prêmio de HQ mais importante do mundo

#28 - Brasileiros em 2021 e preguiça na Marvel

#27 - Brasileiros pelo mundo e brasileiros pelo Brasil

#26 - Brasileiros em 2021 e a Marvel no Capitólio

#25 - Mais brasileiros em 2021

#24 - Os brasileiros em 2021

#23 - O melhor de 2020

#22 - Lombadeiros, lombadeiras e o lombadeirismo

#21 - Os quadrinistas e o bolo do filme e das séries

#20 - Seleções do Artists’ Valley

#19 - Mafalda e o feminismo

#18 - O Jabuti de HQ conta a história dos quadrinhos

#17 - A italiana que leva a HQ brasileira ao mundo

#16 - Graphic novel é só um rótulo marketeiro?

#15 - A volta da HQ argentina ao Brasil

#14 - Alan Moore brabo e as biografias de Stan Lee

#13 - Cuidado com o Omnibus

#12 - Crise criativa ou crise no bolo?

#11 - Mix de opiniões sobre o HQ Mix

#10 - Mais um fim para o comic book

#9 - Quadrinhos de quem não desiste nunca

#8 - Como os franceses leem gibi

#7 - Violência policial nas HQs

#6 - Kirby, McFarlane e as biografias que tem pra hoje

#5 - Wander e Moebius: o jeitinho do brasileiro e as sacanagens do francês

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#1 - Eisner Awards | Mulheres levam maioria dos prêmios na edição 2020

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