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Enquanto Isso... nos Quadrinhos | Lombadeiros, Lombadeiras e o Lombadeirismo

Mais: a Favela vs. a Covid-19, as Máscaras vs. a Covid-19, melhores do ano e Patrick Dean

18.12.2020, às 15H06.
Atualizada em 18.12.2020, ÀS 19H25

“O nerd de boutique.”

Colecionador Gourmet.”

“A atualização do comprador de livro por metro.”

Inflacioneiro.”

Falso leitor.”

Quem compra mais que lê, viciado em capa dura.”

Decorador de estante.”

O comprador-expositor-não-leitor.”

A bolha que vai estourar.”

Um entusiasta da forma.”

“A mania de organização e preservação do charme visual da estante.”

O leitor culposo: um cara que compra sem a intenção de ler.”

Sou lombadeiro e quero a coleção toda com o mesmo padrão. Posso usar dois tênis diferentes que vão cumprir a função de proteger o pé, mas esteticamente e pro meu T.O.C., vai ficar uma merda, vai me corroer por dentro toda hora que eu olhar para eles. O mesmo vale para quadrinhos.”

Fonte: Submundo HQ

Para alguns, é motivo de indignação. Para outros, é motivo de vergonha – pessoal ou alheia. Para alguns, é fundamento para acusação. Para outros, também é motivo de orgulho. Tem quem considere medicinal.

Esse é o lombadeirismo, uma mania relativamente recente no mercado de quadrinhos brasileiro. Tem a ver só com a organização visual da sua coleção na estante ou com algo mais amplo – um interesse maior pela embalagem do que pelo conteúdo.

A proliferação de HQs em capa dura e a diminuição progressiva dos gibis em capa canoa (ou grampeados) são os principais fatores que geraram a mania, da parte das editoras. Da parte dos leitores – alguns leitores, pelo menos – a ideia de formar padrões na estante agradou.

Agradou a ponto de, segundo a maioria dos detratores da mania, criar uma leva de compradores de HQ – os lombadeiros ou lombadeiras – que não leem e só usam as lombadas de decoração. Os mesmos detratores acreditam que este tipo de comprador sinaliza às editoras para fazer mais HQs “decorativas”, prejudicando quem é leitor de fato, valorizando graficamente conteúdo que não merece essa valorização, aumentando os preços sem necessidade, elitizando o mercado e, por fim, criando uma bolha.

A bolha de consumo hipotética seria uma aposta exagerada das editoras nesse tipo de leitor, o lombadeiro ou a lombadeira, em detrimento de outros – como os que renovariam o mercado. Sem renovação de leitores, o mercado não dura. Se essa bolha existir e estourar, pode levar editoras e deixar uma geração sem gibi da capa que for.

Um dos marcos do lombadeirismo é a Coleção Oficial de Graphic Novels Marvel que a Salvat lançou no Brasil em 2013. Ela se baseou em coleções europeias que miravam o mesmo público: o cara que leu esse material na infância ou adolescência e, estimulado pelos filmes (o primeiro Vingadores estourou recordes em 2012), tinha grana para gastar de novo, e a mais, na nostalgia. E com embalagem à altura da nostalgia – se essa história está em capa dura, é porque é um clássico, né?

A cereja do bolo eram as lombadas: quando você alinhasse os 60 volumes da Coleção, formaria um grande panorama do Universo Marvel na pintura de Gabrielle Dell’Otto.

Salvat, Eaglemosss e Planeta deAgostini aportaram por aqui com mais coleções – todas com esta sacada do panorama nas lombadas para estimular o completismo. A Panini também passou a investir mais em lançamentos com capa dura e ampliou sua entrada em livrarias. Outras editoras seguiram a deixa.

Quem tinha mais tempo de mercado assistiu a isso como senhorinhas agarradas às bolsas: “Gibi brasileiro em capa dura? Mangá em capa dura? DEADPOOL em capa dura?” Quando questionados sobre o que estava vendendo, editores respondiam: “Capa dura.” Independente do conteúdo.

Capas duras dão status. Ou davam, quando eram um badulaque gráfico mais raro. Também já foram mais caras. Hoje, imprimir e lançar um gibi em capa dura é só de 25 a 40% mais caro do que lançar o mesmo gibi em capa cartonada (depende do tamanho do miolo). A percepção de valor que se ganha com a capa dura, porém, é maior do que os 25 a 40%.

Na prática isto quer dizer que um quadrinho que custa R$ 70  tem chances de vender mais que o quadrinho de miolo idêntico a R$ 50, mas com encadernação mais simples.

A capa dura ainda tem outra vantagem para as editoras, que é a durabilidade e conservação do produto no transporte e nas livrarias. As capas comuns degradam mais rápido.

Em contrapartida, os mesmos leitores que percebem vantagem em pagar mais caro por um produto mais refinado passaram a ver desvantagem em comprar HQs que não têm o mesmo apuro gráfico. Pagar R$ 50, em capa cartonada, é “mais caro” do que pagar R$ 70, caso o mesmo material saísse em capa dura.

“Se eu bater na capa e não fizer toc-toc, não levo” virou lema dos lombadeiros.

“Nossos livros são feitos para serem lidos, mas não temos absolutamente nada contra a ideia de que eles sejam também colecionados”, diz Lielson Zeni, editor da Darkside. A editora começou a publicar quadrinhos na sua linha Darkside Graphic Novel em 2017. Todos, sem exceção, saem em capa dura.

“O livro é um conjunto e a parte gráfica, o conteúdo e o trabalho com o texto são alguns dos elementos desse conjunto. A Darkside entende que seu público é exigente e espera que a editora entregue um bom trabalho em todos os aspectos e é esse o nosso objetivo com qualquer título que a gente produza”, reforça Zeni.

Assim como a Darkside, editoras como Comix Zone, Figura e Pipoca & Nanquim sugiram nos últimos três anos com a proposta de lançar todos ou quase todos seus quadrinhos em capa dura. Todas são conhecidas por terem público fiel. Outras, como Nemo e Todavia, apostam quase sempre em capas cartonadas – de olho em livros mais baratos.

A Panini, responsável pela maioria esmagadora de lançamentos de HQ no Brasil, tem um processo complexo para decidir entre capas duras e capas cartonadas – ou lançar as duas opções, como no caso da coleção Graphic MSP.

“Os critérios para lançar uma HQ em um formato ou outro (grampo, capa cartão, capa dura, Omnibus, etc) são vários: a força do personagem e/ou dos autores no Brasil; quantos são os volumes de uma série; se trata-se de uma história ou fase consagrada que já saiu no Brasil em outros formatos e acabamentos; pode ser por recebermos pedidos nesse sentido etc.”, diz Leonardo Raveggi, diretor editorial da Panini Brasil.

“Realmente varia de caso pra caso e visa viabilizar comercialmente um material. Por exemplo, uma capa dura fica mais tempo no mercado e obedece a uma lógica de distribuição às vezes bastante diferente de um material pensado principalmente para as bancas, então a performance dele é melhor”, ele completa.

Foto: Caio Oliveira

“Eu nem ligo para o tipo da lombada. O que incomoda é a diagramação fora de padrão. Alguns bem mais altos, outros mais largos. A estante fica parecendo uma sanfona velha.”

“Se [lombadeiro] for alguém que sente tesão pelas lombadas, não me considero. A única coisa que me incomoda bastante é falta de padronização. Se começam com um tipo de letra, deveriam manter o mesmo na coleção. Se começar com um tamanho, deveria seguir o mesmo tamanho. Para esses itens, me incomoda bastante. Sou um lombadeiro?

Tudo é caro demais para que não seja bem organizado, cuidado e apreciado pelas visitas e afins.”

Estas aspas, assim como as do alto do texto, vieram de uma pesquisa rápida e informal sobre o que é – e quem é – lombadeiro ou lombadeira nas minhas redes sociais.

Há alguns anos, circulou um anúncio de venda de lombadas Salvat. Apenas as lombadas, sem o volume completo. O leitor poderia comprar as lascas da edição para garantir o desenho na sua estante. Verdadeiro ou não, o anúncio sintetizou muito do lombadeirismo.

O que se encontra hoje no Mercado Livre é o inverso: caso você tenha buracos na sua coleção Salvat (ou outras), pode comprar adesivos que cobrem toda a lombada dos volumes que você tem. Diminui o gatilho de T.O.C. com o desenho incompleto.

E a bolha? Existe? Vai estourar? Consultei quatro editores nacionais a este respeito, mas só um topou responder: Lielson Zeni, da Darkside.

“Não vai acabar a demanda por livro visualmente atraente, mas pode acabar a demanda por grandes coleções de livros em capa dura. Da mesma forma, uma coleção que aposta no saudosismo de leitores antigos não parece ser tão chamativa pra leitores novos. Mas já acho que bom acabamento visual não tem nada a ver com isso. Uma pessoa deixaria de começar a ler um livro porque ele é em capa dura? Não me parece que seja por aí, muito pelo contrário: uma edição atraente, que chame a atenção, pode ser o material que vai trazer uma pessoa para o seu primeiro quadrinho.”

FAVELA VS. COVID-19

Longe de capas duras ou capas moles, os quadrinhos avançam longe do papel. Favela vs. Covid-19, uma produção brasileira de jornalismo em quadrinhos, acabou de ganhar uma menção honrosa entre reportagens inovadoras do ano.

Criada por Priscila Pacheco, Alexandre De Maio, Cecilia Marins e Alessandra De Maio, a reportagem conta como a rede de moradores de três favelas de São Paulo se mobilizaram para encarar a Covid-19 na falta de iniciativa rápida do poder público.

A HQ mistura desenhos, fotos, falas em balões e em áudio e vídeo. É uma imersão no assunto, guiada pelos quadrinhos. E você lê completa aqui, em português, inglês, espanhol ou polonês.

“Foi a chance de usar o jornalismo em quadrinhos para mostrar que mesmo com um governo ineficiente como esse, as favelas e periferias se organizaram para minimizar os efeitos da pandemia”, diz Alexandre De Maio, também autor da HQ-reportagem Raul, em conversa via Facebook. “E também uma oportunidade de usar todo o potencial de informação da internet, com quadrinhos, vídeos, fotos, animações, para jogar luz nessa guerra que estamos vivendo em São Paulo contra o vírus.”

A menção honrosa veio esta semana do site The Whole Story, que fez uma lista de reportagens de 2020 com novas soluções no jornalismo.

MÁSCARAS

É possível fugir do vírus, mas não é possível fugir das máscaras. E as máscaras são o tema do que pode ser uma das grandes antologias de quadrinho brasileiro de 2021.

Organizada pelo paulista Rafael Louzada (Doppler), Baile de Máscaras vai reunir 90 quadrinistas nacionais em 50 HQs inéditas, todas em torno de máscaras. Pedro Cobiaco, Petra Leão, Alex Mir, Ana Recalde, Caio Oliveira, Camilo Solano, Daniel Esteves, Jéssica Groke, João Pinheiro e Roger Cruz estão entre os colaboradores.

Samuel Sajo conta a história de uma menina e seu avô que encontram um museu em meio às ruínas do futuro (é a HQ da imagem acima). Flávia Gasi e Fred Hildebrandt mostram um menino esquimó que se recusa a usar a máscara de doninha, seu animal protetor. Em “Face Oculta”, de Petra Leão e Nicky Milky, a máscara é a mentira em torno de um triângulo amoroso.

“A máscara é trabalhada das formas mais diversas possíveis, desde sua forma mais funcional como equipamento de proteção, ou como adereço festivo, passando pelo sentido mais figurado da representação da mentira ou a imaginação”, diz Rafael Louzada. “Tem histórias de mistério, romance, super heróis, crítica social e por aí vai.”

Todo o lucro com a HQ será doado para três entidades beneficentes que estão desenvolvendo projetos contra a pandemia. Tem mais detalhes na página de Baile de Máscaras no Catarse. Dá para garantir a HQ a partir de R$ 40 (ou R$ 20 em formato digital), mas também há várias recompensas que incluem desde outros quadrinhos dos colaboradores até artes originais. O lançamento é em março.

MAIS, MAIS, MAIS MELHORES DO ANO

Como adiantei na semana passada, parece que Kent State, de Derf Backderf (Meu Amigo Dahmer) é a graphic novel do ano nos EUA. Ela lidera a lista da Publishers Weekly, que é feita a partir de uma votação entre 14 críticos importante no mercado. E também aparece no top 10 respeitável do New York Times, assim como no top 100 (!) da Geek Cast Radio.

Talvez apareça nas listas de melhores de 2021 no Brasil. Nesta segunda-feira, o próprio Derf anunciou via Facebook que Kent State vai sair em português – com direito a um aceno pro seu chapa Marcello Quintanilha. Ainda não se sabe qual será a editora nacional.

O álbum conta o dia em que a Guarda Nacional dos EUA abriu fogo contra uma manifestação estudantil da universidade estadual de Kent, em Ohio. O fato completou 50 anos em 2020.

Encontra-se outras HQs em mais de uma lista: Paying the Land, novo de Joe Sacco (que também já tem editora no Brasil), A Solidão de um Quadrinho Sem Fim, de Adrian Tomine (que já saiu aqui pela Nemo) e Jack Kirby: a Épica Biografia do Rei dos Quadrinhos, de Tom Scioli (sai pela Conrad em janeiro).

Vale dar uma conferida na lista do Nerdist de Melhores Momentos dos Quadrinhos em 2020, mais focada em super-heróis, os Melhores Quadrinhos Canadenses de 2020 da CBC e, de novo, o listão de 100 HQs da Geek Cast Radio. Sugestão de leitura legal é o que não falta.

PACO ROCA

Os meus melhores do ano? Antes de fazer minha lista, eu queria muito ler Regreso al Edén, novo álbum de Paco Roca, que saiu no início de dezembro na Espanha. A editora Astiberri anunciou que a primeira tiragem – 25 mil exemplares – esgotou em onze dias.

A nova HQ do ator valenciano trata da Espanha em 1946, um período de provações para famílias pobres no país, que têm que recorrer ao mercado negro para botar comida na mesa. Tudo é contado a partir de uma foto.

Por que eu quero ler agora? Porque Paco Roca está numa sequência de HQs de qualidade incontestável, que o coloca entre os melhores romancistas gráficos em atividade no planeta.

Por enquanto, ele só teve lançado aqui Rugas, em 2017, pela Devir. A mesma editora, aliás, anunciou há poucos dias A Casa, um dos meus álbuns preferidos de Roca, para o ano que vem. A tradução vai ser de Jana Bianchi. Pode reservar espaço na sua lista de melhores de 2021.

PATRICK DEAN

Faz dois anos que Patrick Dean, quadrinista de Athens, Georgia, EUA, foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica. A doença degenerativa enfraquece seus músculos e afeta o movimento. Não se conhece a causa e não há cura.

Ele tinha acabado seu primeiro álbum em quadrinhos, Eddie’s Week, pouco antes do diagnóstico. Depois, parou de caminhar e perdeu a fala. Suas mãos ainda funcionam pra segurar a caneta, mas o prognóstico é que ele perca o movimento delas também.

Eleanor Davis, amiga de Dean e também quadrinista (das melhores do mundo), escreveu sobre o amigo há poucos dias no TCJ:

“Não tem lado bom, não tem lição de filme, não tem final feliz na doença do Patrick. É um troço que deu errado, mega errado, um pesadelo. É um troço que dá vontade de arrancar os cabelos, as roupas e sair gritando. É uma coisa do mal. Tem uma coisa do mal, inadmissível, acontecendo com nosso amigo. E não há o que fazer.”

Dean, apesar de tudo, continua desenhando e vai continuar a desenhar – com os olhos. Ele está aprendendo a usar uma tecnologia que acompanha seu olhar e o transforma em riscos no computador. Na descrição do site Boing Boing: “ela lança um infravermelho no olho, que mede o reflexo da luz com um sensor ótico. O software traduz os movimentos dos olhos em traços na tela, em tempo real.”

É assim que Dean está reaprendendo a desenhar. Ele vai postando os resultados no Instagram:

Quando eu ver alguém perguntando de onde vem essa vontade, esse ímpeto de continuar a fazer quadrinhos, ou mesmo por que os quadrinhos valem a pena, eu vou lembrar do Patrick Dean.

 

(o)

Sobre o autor

Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato.

Sobre a coluna

Toda sexta-feira, virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.

 

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#17 - A italiana que leva a HQ brasileira ao mundo

#16 - Graphic novel é só um rótulo marketeiro?

#15 - A volta da HQ argentina ao Brasil

#14 - Alan Moore brabo e as biografias de Stan Lee

#13 - Cuidado com o Omnibus

#12 - Crise criativa ou crise no bolo?

#11 - Mix de opiniões sobre o HQ Mix

#10 - Mais um fim para o comic book

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