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Crítica

Clint Eastwood acerta (mais) contas com sua história em Cry Macho

Diretor flerta com o fan service e volta a viver caubói em falso filme de escapada

16.09.2021, às 21H49.
Atualizada em 17.09.2021, ÀS 00H16

Desde sempre um individualista, Clint Eastwood começou a dirigir filmes nos anos 1970 para que pudesse ter mais controle criativo sobre as produções que estrelava. Neste 2021 completam-se 50 anos que ele dirige a si mesmo, e parece inevitável que esse exercício perene de se enxergar pelo lado de fora torne-o cada vez mais consciente de sua autoimagem. Eastwood levou anos para fazer Os Imperdoáveis, por exemplo, porque não se sentia velho o suficiente para interpretar Will Munny, e nisso já se vão três décadas. 

O fato de Eastwood protagonizar Cry Macho como um nonagenário é obviamente o elemento central deste faroeste ambientado nos anos 1970, e disso advém tudo que envolve o filme, desde os pontos de interesse da trama até a cadência da narrativa. A trajetória do ator se torna indissociável do personagem que ele interpreta, o ex-caubói de rodeio Mike Milo, que recebe de seu antigo chefe no Texas a incumbência de buscar no México um adolescente-problema; esse é o fiapo de trama que coloca novamente em contraste geracional o velho e o novo, o mestre e o discípulo, fórmulas que Eastwood trabalhou sazonalmente em filmes como Honkytonk Man, Um Mundo Perfeito e Menina de Ouro. 

Honkytonk Man saiu em 1982 e colocava o astro no papel de um cantor doente que tentava chegar a Nashville para um último suspiro cantado e, quem sabe, se eternizar na música. Não era o primeiro filme em que Clint Eastwood morria em cena, mas foi o primeiro em que o ator se viu diante da oportunidade de lidar com o fim do seu próprio legado, e como imprimir isso na ficção. Ou seja: o ator e diretor já está há 40 anos modulando em narrativas distintas uma ideia de elegia para si mesmo e sua obra, e o que vemos em Cry Macho é o novo ápice desse movimento, já reiterado “recentemente” em Gran Torino. 

Nessa chave de homenagem, uma das novidades de Cry Macho é que - em sintonia com o tom bonachão do filme - Eastwood agora sonda comicamente o terreno do fan service. Vemos fotografias de Eastwood jovem nos retratos de rodeio na parede de Mike (um recurso que também não é inédito, porque Eastwood aparecia reproduzido em seus filmes antigos até em Jersey Boys, um longa em que ele não atua), e, quando fala sobre seu dom amistoso com animais, Mike diz que trabalhou muito com eles - uma piada interna para quem se lembra do sucesso do orangotango Clyde. Ironicamente, Cry Macho nega o que seria o fan service máximo: quando o americano entra numa loja para comprar roupas e se vestir mais parecido com os mexicanos, ele não sai de poncho e sim de jaqueta.

Nesses momentos, Eastwood dá aquele sorriso famoso de canto de boca, porque evidentemente já não deve nada a ninguém, nem a si mesmo, e reconhece a graça dessas referências. Quem se ocupa de observar uma progressão “de autor” nos filmes vai ter material suficiente em Cry Macho, enfim, para examinar como Clint Eastwood enxerga a si mesmo. Há meros três anos, por exemplo, o diretor voltou à atuação em A Mula mas se recusou a dar a seu personagem um desfecho conciliatório que significasse assentar com a família, o amor. Em Cry Macho, já é diferente. Aos 91 anos, o eterno mulherengo e solitário faz uma concessão por vez. 

Para quem não é completista de Eastwood nem está interessado nas vaidades do ator (cuja mítica o diretor reconhece aqui nos planos em que Mike tem sua silhueta definida pela contraluz, pelo chiaroscuro, pela sombra do chapéu), Cry Macho já se oferece como um filme distinto, mas não excludente: uma experiência mundana, até trivial, condizente com um protagonista de 90 anos que deixou o conforto de sua casa para estar num road movie a contragosto. Eastwood sempre soube ser empático e se colocar no lugar dos seus protagonistas, sem demagogia. Em Sniper Americano, ele não julga as escolhas de vida do militar matador, embora as problematize. Em Cry Macho, faz todo o sentido que Mike Milo organize sua rotina, mesmo na estrada, em torno dos momentos de refeição e dos momentos de cochilo - por mais que isso talvez resulte num filme de anti-climaxes. 

O que Cry Macho tem de melhor é justamente essa cadência lenta de nonagenário, um ritmo que faz as coisas assentarem e ganharem peso dramático: uma atenção aos pequenos gestos e não aos arroubos. Então, em certo momento, o filme se detém para que Mike explique ao menino a melhor forma de lacear uma sela de cavalo. Mais tarde, fica meio minuto acompanhando enquanto Mike xinga e recoloca para dentro do carro - malas, ferragens, um banco inteiro - tudo aquilo que a polícia na estrada fez tirar. Num filme “normal”, preocupado com os finalmentes, tudo isso seria suprimido em elipse. Em Cry Macho, assistir a uma personagem falando algo em mexicano, depois assistir ao garoto traduzindo para Mike em inglês, é o que dá à cena o intervalo necessário para que nós acreditemos num amor à primeira vista.  

No fundo, o que estamos vendo é um falso filme de escapada, já que tudo nele se faz sem pressa. 

Não é de agora que Eastwood encontra certa paz no trivial como uma forma de remissão pelos papéis de vigilante que ele perpetuou no auge da carreira. Um exemplo recente marcante é 15h17 - Trem Para Paris, um filme parente de Cry Macho porque também preferia se ocupar dos americanos médios tomando sorvete na Europa do que em eventuais intrigas que resultariam num desfecho de triunfo. Quando Mike Milo diz em Cry Macho que a cultura do machão é uma perda de tempo, obviamente é o Clint Eastwood de 2021 quem se coloca ali, mas para além do discurso revisionista isso também é posto em prática no filme: as cenas de conflito são absolutamente protocolares para Eastwood, e ele faz questão de resolvê-las no limite do desinteresse e da galhofa, com cacarejos, derrapadas e uma surra oculta no meio de uma pequena multidão de anônimos. 

É preciso trazer a vivência marcada no corpo para contar uma história dessa com propriedade. Nos xingamentos contra os excessos da polícia, Mike/Eastwood está ecoando seu velho desdém contra a autoridade estabelecida, que lhe limita o individualismo. Nos planos-detalhes que abrem o filme (o chaveiro no carro, a bota do caubói), na silhueta depois iluminada no contraluz, fica implícita uma força de virtuosidade, que precede os personagens - e em última instância é isso que resolve, a priori, os eventuais conflitos que se apresentam pelo caminho. Cry Macho existe suspenso nessa realidade muito própria, e a isso pode se chamar também de privilégio. 

Nota do Crítico
Ótimo