Cobrir o Oscar é falar dos inúmeros problemas da premiação quase o tempo todo, mas precisamos dar crédito onde a Academia merece. Nos últimos 10 anos, o crescimento significativo no número de membros deixou o corpo votante mais jovem e internacional, e isso mudou o “tipo” de filme que vence o Oscar. De lá pra cá, vimos coisas como Moonlight, Parasita e Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo levantarem a estatueta. Agora, podemos adicionar Anora à lista.
Mesmo dentro dessa lista, contudo, Anora é um caso curioso e bem-vindo. Moonlight tinha nomes relativamente grandes e vinha acompanhado de uma forte carga social, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo tinha nomes genuinamente grandes no elenco e vinha acompanhado de um estúdio expert em campanha de Oscar na A24. Talvez Parasita seja o paralelo mais adequado. Assim como Anora, o filme não tinha nomes famosos, e sua vitória serviu como o reconhecimento de um diretor cuja voz é importante no cinema. Ambos, claro, também ganharam a Palma de Ouro do Festival de Cannes antes de levar o Oscar, assim conquistando a dobradinha mais desejada da indústria.
Mas até assim a comparação fica aquém da realidade. Bong Joon-ho já era um talento reconhecido mundialmente, e havia feito filmes de grande impacto na Coreia (Memórias de um Assassino) e nos EUA (Expresso do Amanhã). Sean Baker é um queridinho indie. Antes de Anora, seu filme de maior bilheteria era Projeto Flórida, com Willem Dafoe, que fez apenas US$10 milhões. Ele não é tão jovem, e tem dirigido regularmente desde Take Out em 2004, mas atingiu outro nível no olhar crítico e cinéfilo só no meio da década passada, com Starlet (2012) e Tangerine (2015).
- Ainda Estou Aqui é quinto filme latino a ganhar Oscar de Filme Internacional
- Ainda Estou Aqui | Guillermo del Toro celebra vitória do filme falando português
Permitam-me um exemplo inusitado: a vitória de Baker no Oscar, onde ele ganhou Melhor Filme, Atriz, Direção, Roteiro Original e Montagem é comparável a um Mbappé ganhando a Copa do Mundo com 19 anos lá em 2018. Mal deu tempo de considerar o impacto da chegada de Baker entre os grandes, e ele já correu em direção ao maior troféu de seu campo. Parecia que ele havia acabado de começar sua ascensão. Do nada, ele estava no topo.
Só que não foi do nada. Críticos de cinema e seguidores da cena indie sabem muito bem da importância de Baker não só como cineasta, mas também como curador, defensor da arte e membro ardente da cinefilia. Ele só não havia atingido o mainstream. Que bom que esse momento veio com tamanho estrondo.
Afinal de contas, quantas vezes reclamamos do Oscar por demorar a reconhecer talentos? Eles deixam de premiar Al Pacino e Martin Scorsese por suas obras-primas, e então pedem desculpas anos depois com filmes significativamente inferiores aos clássicos. Baker não é Scorsese, mas Anora é uma de suas melhores obras, e merece o reconhecimento, assim Scorsese merecia ter ganho com Os Bons Companheiros, e não ter esperado mais 15 anos até Os Infiltrados. Podemos ir além disso: Anora não só merece o reconhecimento como é o melhor tipo de vencedor do Oscar.
Antes de mais nada, Anora é um grande filme. Nem todo vencedor do Oscar pode dizer o mesmo. O gosto da Academia é irregular, para dizer o mínimo, mas aqui há um acerto enorme. Brasileiros, claro, torciam para Ainda Estou Aqui, e minha mente crítica acha O Reformatório Nickel um filme superior (o único dos 10 que eu colocaria à frente de Anora), mas Anora – nosso filme #1 de 2024 – é uma divertida, apaixonante e ansiosa aventura que reflete com energia caótica nosso mundo, onde tudo é comércio e todos estão à venda, quer queiram, quer não. Ele é engraçado, e então tenso, e então devastador. Um pacote completo.
É claro que existe a campanha, feita com maestria pela Neon, e que o filme havia sido celebrado desde o dia em que estreou em Cannes, mas este não é um épico de grandes ambições (O Brutalista), um sucesso de bilheteria e público (Duna: Parte 2 e Wicked: Parte Um) ou um filme divisivo e polêmico (Emilia Pérez) cuja vitória seria instantaneamente questionada. Anora, em primeiro lugar, é bom.
Em segundo lugar, Anora é feito por pessoas que, tipicamente, não ganham o Oscar. Não no momento em que estão. Aqui está um cineasta no ápice de sua carreira, fazendo um filme 100% original, independente, e com um elenco protagonizado por uma atriz que, a partir de agora, será um nome instantaneamente reconhecível. Mikey Madison tinha seus fãs, particularmente quem gostava de sua veia cômica e sangrenta devido a Pânico (2022) e Era Uma Vez em… Hollywood, mas em Anora, ela é uma revelação, e ela é outra razão pela qual a vitória do filme deve ser celebrada. Madison é mais do que magnética aqui. Seu rosto demanda nossa atenção, e sua capacidade de nos fazer rir só para partir nosso coração é mais do que necessária para o sucesso do filme. Ele não existiria sem ela.
- Ainda Estou Aqui se torna o primeiro filme brasileiro a ganhar o Oscar
- Oscar 2025 é o mais buscado da história no Google; Brasil tem maior engajamento
Que bom, então, que Anora existe. E que bom que ganhou o Oscar. Além de citar Baker e Madison, dois nomes em quem todos os jovens do meio podem se espelhar devido ao tipo de filmes e papéis que fazem, que venceram o Oscar não como um reconhecimento de seu passado mas de suas contribuições no presente, há o foco da narrativa. Este é um filme sobre uma jovem que é definitivamente parte do Século 21. Parte da cultura do corre. Uma mulher.
Para onde olhamos, Anora não é o tipo de filme que ganha o Oscar. É o tipo de filme que deveria ganhar, mas que normalmente se contenta com menções nas listas de melhores do ano de críticos ou sites como o Omelete. Sua vitória é encorajadora. Assim como Moonlight e Parasita, ela sugere o surgimento de um Oscar melhor e mais interessante. Nem sempre haverá outros filmes como Anora, mas quando eles aparecerem, o Oscar precisa continuar os celebrando.