Rurouni Kenshin: Hokkaido Arc/Shueisha/Reprodução

Mangás e Animes

Artigo

Rurouni Kenshin: Samurai X "morreu" após o crime cometido pelo autor?

É possível passar por cima do autor e aproveitar os filmes de Samurai X na Netflix?

04.08.2021, às 15H59.

Com a Netflix lançando os filmes de Rurouni Kenshin (ou Samurai X, como é mais conhecido no Brasil), um antigo debate ressurge. Nobuhiro Watsuki, o criador do retalhador Kenshin Himura, se viu envolvido anos atrás em um crime de posse de material com pornografia infantil, e isso repercutiu no mundo inteiro entre fãs e empresas.

Aproveitando o momento, relembramos toda a história envolvendo o autor, o crime e também o desfecho (além de outras histórias semelhantes que aconteceram com outros autores da Shonen Jump) para você refletir e pensar se é possível assistir ao Samurai X: O Final e Samurai X: A Origem separando o autor da obra.

O fatídico ano de 2017

Rurouni Kenshin/Shueisha/Reprodução

Os fãs de Rurouni Kenshin não faziam ideia, mas aquele ano de 2017 seria muito marcante para a franquia. Teve anúncio de novo jogo de celular, o início da publicação de Rurouni Kenshin: Hokkaido Arc (continuação oficial da história) e ainda circulavam boatos sobre a produção de um novo filme live-action da série, possivelmente adaptando o arco da Justiça dos Homens (nunca antes transposto integralmente para outra mídia sem ser o mangá). Faltando dois anos para a comemoração dos 25 anos de Rurouni Kenshin, o samurai com cicatriz em forma de cruz tinha tudo para ser recebido pelos fãs com muito carinho e nostalgia, mas aí chegou o fatídico mês.

Em novembro de 2017, a polícia japonesa cuidava de uma operação contra pornografia infantil e o autor de Rurouni Kenshin acabou envolvido nessa história. Após uma autorização judicial, a polícia de Tóquio vasculhou o escritório do mangaká Nobuhiro Watsuki e encontrou DVDs com vídeos de adolescentes nuas, todas menores de idade. Como Rurouni Kenshin é um título de alcance mundial, as notícias se espalharam como fogo. A investigação avançou e o autor, então com 47 anos, prestou um depoimento à polícia confessando seu interesse por adolescentes, mas especificamente da faixa etária de quem cursa o colegial (o equivalente japonês ao Ensino Médio brasileiro).

Rurouni Kenshin/JBC/Reprodução

A declaração revoltou fãs em todo mundo e as editoras responsáveis pelos direitos de Rurouni Kenshin pelo mundo correram para conter a crise. A Shueisha, a editora japonesa, interrompeu a publicação da continuação da franquia de Watsuki e a decisão reverberou nos demais países. A VIZ, representante americana dos mangás da Shueisha, também cancelou a publicação dos volumes do mangá do autor. No Brasil a notícia não causou problema para a editora JBC, detentora dos direitos da obra, pois o último título da série lançado por aqui, o especial Rurouni Kenshin Tokuhitsuban (uma releitura do primeiro filme feita pelo autor), havia sido publicado no começo de 2016 pouco depois do autor visitar nosso país.

Alguns meses se passaram, Nobuhiro Watsuki foi considerado culpado pelas autoridades japonesas e sua pena foi o pagamento de uma multa de 200 mil ienes (em valores de hoje, cerca de R$ 9.600,00). O valor foi pago pelo mangaká e, com o passar do tempo, sua vida foi voltando à normalidade no Japão.

O retorno de Kenshin no Japão

Em junho de 2018, Rurouni Kenshin: Hokkaido Arc voltou a ser publicado nas páginas da revista mensal Jump SQ ao lado de outros sucessos como Blue Exorcist e Moriarty, o Patriota. A serialização foi retomada na revista alguns meses após a equipe editorial da Shueisha publicar na internet uma nota dizendo que Nobuhiro Watsuki havia passado por um longo momento de reflexão. A revista ainda declarou que retornaria a publicação do mangá, interrompido após 3 capítulos, em respeito aos leitores. O título segue firme e forte com sua publicação no Japão, e não é incomum algum volume encadernado novo aparecer na lista de quadrinhos mais vendidos.

Rurouni Kenshin/Reprodução

Os boatos da produção de um novo longa-metragem com atores não só se confirmaram como foram expandidos: agora seriam dois filmes para adaptar o que faltava do mangá de Rurouni Kenshin. Os produtores dividiram a história em duas partes, com Rurouni Kenshin - The Final mostrando o embate decisivo entre Kenshin Himura e Enishi Yukishiro, seu antigo cunhado, e Rurouni Kenshin - The Beginning, mostrando a história da origem da cicatriz de Kenshin e seu relacionamento com Tomoe Yukishiro. As gravações se iniciaram em novembro de 2018 e duraram cerca de um ano, com o filme sendo lançado mundialmente pela Netflix em 2021 após vários adiamentos por conta da pandemia de COVID-19.

Para celebrar o lançamento do longa no Japão, a Shueisha convidou vários autores de mangás para uma exposição em homenagem a Rurouni Kenshin. Um dos autores convidados foi Eiichiro Oda, ninguém menos que o criador de One Piece. Antes de trabalhar com o mangá de piratas, Oda foi assistente de Watsuki e teve seu trabalho homenageado na reta final de Rurouni Kenshin em uma cena na qual o símbolo pirata de Monkey D. Luffy aparecia na história de samurais. Além do autor de One Piece, Watsuki recebeu mensagens positivas de Masashi Kishimoto (Naruto), Mitsutoshi Shimabukuro (Toriko), Takeshi Obata (Death Note), Hiroyuki Takei (Shaman King) e muitos outros.

Nobuhiro Watsuki teve todo o suporte da Shueisha para passar por essa crise, assim como teve todo o apoio para retomar sua carreira quase sem danos. Esse não era necessariamente um caso inédito para a editora japonesa, pois anos antes do caso dos DVDs com pornografia infantil um outro autor (que até foi citado no parágrafo anterior) passou por uma crise parecida.

O Caso Shimabukuro

No final dos anos 1990, a Shonen Jump ainda buscava um novo Dragon Ball para chamar de seu. Rurouni Kenshin e Shaman King quebravam um galho no quesito vendas, mas a revista semanal ainda estava atrás de um título arrasa-quarteirão. Em 1997, o novato Mitsutoshi Shimabukuro estreou na antologia com o mangá Seikimatsu Leader den Takeshi (algo como "A História de Takeshi, um Líder do Final do Século"). Na comédia, Takeshi persegue o sonho de ser um grande líder como seu pai, com direito a muita frase ao estilo coach motivacional.

Takeshi Den/Shueisha/Reprodução

O mangá foi um sucesso colossal e era muito querido por leitores mais jovens, logo se tornando um dos pilares da Shonen Jump ao lado de Hunter x Hunter e do recente One Piece. A boa fase, no entanto, acabou em 2002 quando o autor de mangá foi parar nas páginas policiais do jornais. Shimabukuro foi preso, acusado de pagar para transar com uma adolescente de 16 anos e, após a sentença, Seikimatsu Leader Den Takeshi foi "cancelado" pela Shonen Jump. As aspas foram usadas porque a Shueisha deu uma colher de chá a Shimabukuro e permitiu que o mangaká desse um desfecho para sua história em 2005, nas páginas da revista Super Jump.

Embora o caso ainda seja lembrado, isso não afetou a carreira de Shimabukuro. Após publicar uma nova comédia na Super Jump, o autor retornou à Shonen Jump para seu maior sucesso até então, o mangá Toriko. A série de ação sobre caçadores gourmet começou a ser lançada em 2008 e durou oito anos, rendendo um anime feito pela Toei (e disponível no Brasil pela Crunchyroll) e a publicação da história no mundo todo (no Brasil o título foi lançado pela Panini, mas atualmente se encontra paralisado).

Toriko/Shueisha/Reprodução

Recentemente Shimabukuro publicou mais uma série na Shonen Jump, Build King, que acabou cancelada por não ter atingido o prestígio do público leitor (uma forma educada de dizer que foi um fracasso).

A complicada situação de Kenshin no ocidente

Como deu pra perceber, uma grave acusação criminal não necessariamente abala a carreira de um autor de mangás no Japão. Entretanto, no ocidente a coisa parece um pouco mais complicada. Após a notícia envolvendo Nobuhiro Watsuki e pornografia infantil, boa parte das ações envolvendo Rurouni Kenshin no ocidente foram interrompidas.

Rurouni Kenshin/VIZ/Reprodução

A editora VIZ, por exemplo, cancelou a publicação da continuação da história e mantém essa decisão até hoje. O único lançamento envolvendo obras do Watsuki foi a conclusão de uma republicação 3 em 1 do mangá original de Rurouni Kenshin, interrompido após algum tempo de hiato. No Brasil, de forma bem discreta, a editora JBC disponibilizou digitalmente as duas edições de Rurouni Kenshin Tokihitsuban, mas nunca mais demonstrou qualquer interesse em novas republicações do mangá ou mesmo na continuação.

O que se entende é que o crime cometido por Nobuhiro Watsuki até pode ter sido resolvido pelo sistema judicial do Japão, mas foi uma punição considerada leve pelos fãs ocidentais. O impacto foi tanto que uma editora ocidental teria receio de atrelar seu nome ao de um autor envolvido em posse de pornografia infantil, e isso pode ter freado novos planos envolvendo o samurai Kenshin Himura.

Em uma época na qual várias produções dos anos 1990 estão ganhando novas versões animadas, como é o caso de Shaman King, chama a atenção Rurouni Kenshin não ter tido qualquer empreitada semelhante além dos filmes. Como o sucesso dos animes no ocidente passou a ser importante na cadeia produtiva, possivelmente perceberam que novas produções de Rurouni Kenshin não seriam bem recebidas no ocidente por conta do histórico do autor.

Entre os fãs o debate entre separar o autor da obra é antigo e sempre inconclusivo. Muitos alegam que é possível apreciar Rurouni Kenshin ainda hoje, mas há também que defenda o cancelamento do autor. A principal questão das pessoas é a respeito da punição japonesa ter sido feita com apenas uma multa. Pragmaticamente, Nobuhiro Watsuki cometeu um crime e pagou o que a lei japonesa espera de quem comete este crime, embora essa punição não tenha a mesmo peso da mesma lei de outros países. Há todo um debate sobre a lei japonesa ser muito conivente com esses crimes, mas essa é uma outra discussão, e bem mais complexa.

Citamos aqui o crime do Watsuki e do Shimabukuro, mas um outro caso recente envolvendo um autor da Shonen Jump e menores de idade (sim, mais uma vez) teve um desdobramento bem mais severo e pode indicar que as editoras japonesas estão também preocupadas com o impacto negativo da imagem de seus autores no ocidente.

O Caso Act-Age

O mangá Act-Age era um título bastante promissor no catálogo recente da Shonen Jump, mas a história foi encerrada sem um final para a trama. A editora Shueisha cancelou definitivamente o mangá após o roteirista Matsuki Tatsuya ser preso no Japão por assediar garotas menores de idade.

Como contamos aqui no Omelete na época do acontecido, o roteirista do mangá Act-Age foi preso em meados de 2020 após assediar sexualmente uma estudante colegial, uma garota com idade entre 12 e 15 anos, de acordo com informações da imprensa japonesa. O roteirista teria tocado na garota de forma indevida e fugido de bicicleta, mas acabou sendo identificado por câmeras de segurança. O mesmo assédio foi registrado outras vezes, então Matsuki confessou o crime às autoridades.

Act-Age/Shueisha/Reprodução

Após avaliar a crise internamente, a Shueisha decidiu cancelar o mangá Act-Age sem qualquer tipo de desfecho para a história (que era sobre uma garota com dom surpreendente de interpretar). A edição seguinte da Shonen Jump, que já estava impressa, trouxe o último capítulo lançado de Act-Age. A Shueisha ainda pediu desculpas aos leitores e demonstrou apoio à desenhista da obra, Shiro Usazaki. Na época, Usazaki atualizou seu perfil nas rede sociais retirando as referências ao Act-Age, e em dezembro do ano passado ela publicou uma história única na Shonen Jump, intitulada Engan no Cyclope.

O mangá de Act-Age contava com 12 volumes publicados e foi cancelado não só no Japão como no mundo todo. Todas as editoras interromperam a publicação do título, que foi retirado também do site MangaPlus da Shueisha. Act-Age não havia sido licenciado no Brasil até o momento, então não houve cancelamento por aqui.

E agora?

Por mais que essa postura da editora japonesa com Act-Age possa indicar uma mudança na mentalidade da Shueisha, talvez uma tentativa de mostrar às editoras ocidentais que ela não passa a mão na cabeça de autores que saem da linha moral esperada, precisamos lembrar que este mangá era feito por novatos no meio. O caso de Nobuhiro Watsuki envolvia um autor prestigiado no mundo inteiro e uma franquia que movimenta um bom dinheiro todos os anos.

Mesmo com o debate dos fãs ocidentais, o rosto de Kenshin Himura faz parte da história da Shonen Jump e deve continuar sendo lembrado no Japão, quem sabe até vem aí uma futura adaptação cinematográfica de Rurouni Kenshin Hokkaido Arc aproveitando o sucesso que a versão com atores consegue no cinema oriental (porque, cá entre nós, emplacar 5 sucessos de bilheteria não é tão comum assim)?

Embora o autor tenha sido perdoado pela justiça japonesa, a situação de Nobuhiro Watsuki acaba sendo individual para cada fã. Cabe a você, e a este que escreve a matéria, decidir se dá para separar o autor da obra, se você acredita no período de reflexão do mangaká e se sente confortável de assistir aos dois novos filmes lançados pela Netflix. Caso a resposta seja negativa, o jeito é ignorar os novos filmes, guardar a coleção de mangás no fundo da estante e guardar as memórias positivas de quando acompanhamos a saga do Battousai antes disso tudo.