Se alguém caísse de paraquedas na situação atual da corrida do Oscar, teria dificuldades em entender o que levou Emilia Pérez a ganhar 13 indicações. Como um filme com tantas polêmicas, críticas de diversas comunidades e avaliações de público e especialistas extremamente divisórias consegue ser o grande destaque do maior prêmio do cinema mundial? Há uma explicação para isso, e ela começa em maio de 2024, na França.
Cannes foi o primeiro festival a premiar Emilia Pérez. E não foi qualquer prêmio. O júri presidido por Greta Gerwig, diretora de Frances Ha e Barbie, deu a estatueta de Melhor Atriz para o elenco inteiro, assim como consagrou Audiard como o Melhor Diretor do evento. Ainda ali, dava pra notar uma diferença cristalina entre a recepção de crítica e indústria, pois o filme estava longe de ser uma unanimidade para a mídia especializada - leia a crítica do Omelete.
Acontece que boa parte destes eventos , Oscar incluído, não têm o corpo de votantes formado por público ou críticos, mas sim pela indústria e seus pares. Antes das polêmicas, nomes como Denis Villeneuve e James Cameron acompanharam o júri de Gerwig e rasgaram elogios à produção, que só chegaria à audiência, fora de outros festivais, seis meses depois de Cannes. Até ali, o frisson em cima do longa foi o suficiente para que a Netflix comprasse os direitos de distribuição nos EUA e fizesse o filme a sua grande aposta para o Oscar 2025.
A segunda etapa da temporada de festivais e premiações, que normalmente acontece em setembro e outro, começou com os holofotes em Emilia Perez, mas poucos prêmios – citações especiais no TIFF, European Film Festival e alguns outros. As indicações, porém, não poderiam ser mais volumosas e culminaram nas nomeações para os principais prêmios dos EUA, como Globo de Ouro, Critics Choice, Oscar e todos os Sindicatos possíveis – incluindo nos muito importantes prêmios do SAG (Atores), DGA (Diretores) e PGA (Produtores). A campanha da Netflix e a recepção positiva da indústria americana seguia dando certo, mesmo com público e críticos resistentes, até que o filme entrou de vez no circuito popular mundial e as entrevistas para promover o projeto começaram.
Neste momento, Emília Pérez já tinha se consagrado como o maior filme da temporada de premiações e a coroação começou com o Globo de Ouro no início de janeiro. Ali, a comunidade mexicana e trans, principais vozes críticas ao filme, ainda estavam com pouco volume e espaço – o prêmio de Melhor Filme e a suposta rivalidade com o brasileiro Ainda Estou Aqui começaram a mudar a narrativa. Karla virou “rival” de Fernanda Torres, Emilia Pérez, o algoz dos brasileiros na luta pelos prêmios de Melhor Filme Internacional. A vitória de Torres no Globo movimentou a comunidade digital brasileira, que viu o apoio de outros latinos crescer ainda mais, desembocando em inúmeros artigos e reportagens que debatiam a representatividade torta que o longa promovia.
O primeiro estouro da bolha das redes sociais veio com a entrevista que Gascón deu à Folha de São Paulo, acusando a equipe de Fernanda Torres de criar histórias sobre Emília para prejudicar o filme, isso dias depois da brasileira “pedir” para os fãs não insultarem Karla nas redes sociais. De bate-pronto, veículos começaram a buscar as regras do Oscar e reportar que a atriz espanhola estaria quebrando uma regra que impede candidatos ao prêmio de criticar concorrentes. Na mesma velocidade, a imprensa americana tratou de negar qualquer infringimento e seguiu firme como veículo de campanha do longa – algo totalmente natural e comum na época do Oscar. Eis que, 24 horas depois, os tweets de Karla surgiram…
A crise ganhou proporções globais quando a jornalista canadense Sarah Hagi desenterrou inúmeras publicações da artista com teor de racismo, xenofobia e intolerância religiosa. Neste momento, ficou impossível Oscar ou a imprensa, e mesmo a indústria americana, ignorar o movimento das comunidades que criticaram o filme. Acontece que, mesmo com toda a crise, o filme dificilmente deixará de ganhar algumas estatuetas, por dois motivos. Primeiro porque muitos prêmios encerraram a votação antes das polêmicas, e segundo por conta dos corpos votantes quase todos compostos por pessoas da indústria, o que repetiria tudo que aconteceu em Cannes e antes das polêmicas.
À parte os tweets de Karla (se é que é possível isso ser feito), Emilia Pérez já era um filme muito criticado pelos mexicanos, por exemplo. Em matéria feita pelo Omelete, roteiristas, atores e fãs comentam sobre a representação do país e como Audiard desrespeitou a nação. Em outro texto, foi mostrado como a comunidade trans, ponto central da trama, não se enxergou ou concordou com as abordagens escolhidas. Tal distanciamento entre a consagração da indústria e a recepção negativa do público mostra como é possível uma situação tão extrema acontecer. Com a crise dos tweets, porém, fica impossível da indústria ou do Oscar ignorarem o que está sendo falado na internet há meses, e facilita o entendimento de visões tão distintas de um mesmo produto.