A trajetória vitoriosa de Emilia Pérez na temporada de premiações de 2025 não anula - e, de fato, só torna mais prejudicial - a reprodução de estereótipos e preconceitos contra a população transgênero que pode ser observada no filme de Jacques Audiard. É o que relatam dois jornalistas especializados em cultura pop, que se identificam como trans, entrevistados pelo Omelete.
“Particularmente, gosto muito de ver personagens trans com personalidades complexas, que não sejam resumidas apenas pela identidade gênero. [...] Não me incomodaria nem um pouco acompanhar a história de uma mulher trans que fosse líder de um cartel de drogas ou tivesse associação com qualquer outro tipo de crimes, desde que a personagem em questão fosse bem escrita”, comenta Carol G. Fitzpatrick (@eu_carolfitzpatrick). “Mas esse não é o caso de Emilia Pérez”.
Fitzpatrick explica que o filme de Audiard (também autor do roteiro) se foca singularmente na questão das cirurgias de afirmação de gênero da personagem, uma líder de cartel mexicana que deseja abandonar o crime e construir uma nova vida como mulher. “É um estereótipo, a busca pelas cirurgias excessivas para ficar com a aparência mais ‘fiel’ ao gênero com o qual a pessoa trans se identifica. O filme inclusive chama [o procedimento] de ‘cirurgia de mudança de sexo’, que é um termo que caiu em desuso e reforça uma ideia errônea do que a pessoa está passando naquele momento”.
“Na realidade, muitas pessoas trans estão bem com os seus próprios corpos e não pretendem fazer nenhum tipo de cirurgia [...]. Mas isso não é o que as pessoas cis esperam, já que gostam de definir como deve ser a aparência de um homem e de uma mulher”, completa ela, condenando a ênfase que o filme dá à mudança de fisionomia da personagem título antes e depois das cirurgias. “Acho impossível pensar em uma situação em que alguém faça cirurgias plásticas e fique tão diferente que nem a própria família consiga reconhecer, mesmo convivendo de forma tão próxima e intensa como acontece no filme”.
Já Caê Vasconcelos (@cae.vasconcelos) aponta outra problemática: a de retratar a transição de gênero de Emilia como uma maneira de “escapar” das punições por seus crimes como líder de cartel. “Uma transição de gênero nunca vai apagar nenhum passado. Se uma pessoa trans cometeu crimes antes da retificação de nome, das cirurgias, ela vai seguir pagando por isso depois”, declara. “Pessoas trans cometem crimes? Sim, como qualquer outra pessoa. Tivemos um ótimo exemplo de como abordar isso em Orange Is The New Black, com a gigantesca Laverne Cox. Mas, no mundo real, ninguém transiciona para 'fugir' da justiça. No mundo real, não existe redenção para pessoas trans”.
“Estamos vivendo um período de conservadorismo extremo, e em todos os cantos vemos a crescente da transfobia, encabeçada por pessoas como a J.K. Rowling”, comenta ainda o jornalista, citando a autora da saga Harry Potter, que nos últimos anos tem ganhado notoriedade por sua retórica anti-trans nas redes sociais, e por financiar campanhas e organizações com causas transfóbicas. “Esse tipo de produção só dá mais munição para o ódio. Temos tantas histórias reais que poderiam mostrar ao mundo como pessoas trans sempre foram potentes. A existência desse filme é um desrespeito com toda população trans, principalmente latina”.
Apesar de vitórias significativas no Festival de Cannes e no Globo de Ouro, e indicações em peso para quase todas as premiações que antecedem o Oscar 2025, Emilia Pérez também tem atraído desdém nas redes sociais. E não é só do público brasileiro, incensado pelo posicionamento do longa de Audiard como o principal concorrente de Ainda Estou Aqui na corrida pela estatueta de Melhor Filme Internacional - comentadores de todos os cantos do mundo têm expressado seu choque em relação ao prestígio amealhado pelo filme, e uma cena em específico de Emilia Pérez virou símbolo dessa retórica.
Trata-se, é claro, do já infame número musical batizado de “La Vaginoplastía”, em que a advogada vivida por Zoe Saldaña visita um médico que pode realizar o sonho da personagem título. Na canção, o tal doutor cita displicentemente os procedimentos necessários para a proverbial “mudança de sexo” de Emilia, e ainda declama dramaticamente que a cirurgia será para transformar “pênis em vagina!”. “La Vaginoplastía” se transformou em meme, em emblema dos excessos estéticos e discursivos do filme de Audiard, mas também foi adotado como atalho para expressar os problemas de sua representação da experiência trans.
“Eu achei essa cena tão absurda que só consegui dar risada. E não é incomum encontrar vídeos de pessoas trans de vários países diferentes cantando a música de forma irônica”, comenta Fitzpatrick. “Acho esse tipo de atitude importante para deixar claro que a gente não se abala com uma cena tão pífia, e para escancarar a vergonha alheia que esse longa é. O que me incomoda mais é ver pessoas, majoritariamente cis, levando essa produção a sério e a considerando para várias premiações diferentes. Considero isso um escárnio, uma prova de que quem organiza esses prêmios ainda vive em uma bolha muito retrógrada”.
Vasconcelos acrescenta que é difícil entender a lógica por trás das escolhas feitas por Emilia Pérez: “Esse tipo de narrativa não vai agradar ninguém: quem é transfóbico não vai aceitar ver qualquer cena sobre e para as pessoas trans, e as pessoas trans vão sentir a violência da falta de cuidado que a cisgeneridade tem com os nossos corpos e vivências. [...] O mundo não está pronto para humanizar narrativas trans válidas, e esse tipo de olhar só dificulta. Acredito que o filme foi feito para viralizar, e com o aumento da transfobia no mundo ter uma narrativa que representa tudo o que essa galera pensa ajuda no sucesso. A existência desse filme luta contra as lutas trans”.
Apesar de todas essas ressalvas, Fitzpatrick ainda acredita que a atriz Karla Sofía Gascón, que está posicionada para se tornar a primeira mulher trans indicada ao Oscar de Melhor Atriz (e já bateu uma marca similar no BAFTA), pode quebrar um paradigma importante - independente do filme em que está inserida.
“A premiação da atriz, ao contrário dos prêmios entregues à produção como um todo, permitiria que outras pessoas trans pudessem sonhar com esse momento, e mostraria para diretores e produtores que investir em histórias com protagonismo trans, interpretadas por pessoas trans reais, pode ser um excelente negócio para eles”, diz a jornalista. “Mas é importante que entendam que a representatividade não pode se resumir a chamar uma atriz trans e jogar na frente das câmeras, como parece ter sido o caso de Emilia Pérez. Para que a história seja respeitosa e realmente cative o público, em vez de virar chacota, é importante contratar e ouvir pessoas trans em mais etapas da produção”.
Vasconcelos tem um olhar mais reticente sobre a trajetória da atriz na temporada de premiações: “Chega a ser difícil comemorar isso como algo positivo com tudo de errado que esse filme representa. Não critico a Karla por ter topado participar do filme, muito pelo contrário: para uma atriz trans os espaços ainda são muito raros em grandes produções, e é ainda mais difícil o elenco trans ter o poder para alterar algo nos filmes. Ela ganhou o papel, foi lá e entregou todo seu talento na atuação. [...] Gostaria muito de acreditar que, a longo prazo, possamos criticar todas as falhas que o longa tem sem que isso atrapalhe a carreira da Karla, mas as chances dos erros das pessoas cis que fizeram o filme apagarem o brilho dela é muito grande. De todas as pessoas envolvidas, ela é a que mais tem a perder”.
Emilia Pérez estreia em 6 de fevereiro nos cinemas brasileiros.