Quando Homer Simpson e família desembarcaram no Brasil pela primeira vez, em 2002, as piadas sobre o país - e principalmente sobre o Rio de Janeiro - renderam uma avalanche de comentários revoltados com a forma caricata que a cidade foi retratada. Produtores pediram desculpas e se surpreenderam com a reação. Não tinha sido a primeira vez e nem seria a última. Basta lembrar de Velozes e Furiosos: Operação Rio, majoritariamente filmado em Porto Rico. Que Hollywood não está nem aí para precisões geográficas e culturais, isso não é novidade. Entretanto, Emilia Pérez, um dos grandes favoritos da temporada de premiação, laureado em Cannes e abraçado pelo cinema norte-americano ao indicá-lo para 13 Oscars, não foi produzido nos EUA, mas traz consigo uma polêmica típica da cartilha hollywoodiana quando se trata de filmes sobre outras culturas.
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O musical falado em espanhol, dirigido pelo francês Jacques Audiard e estrelado por Karla Sofía Gascón, Zoë Saldaña e Selena Gomez, vem sofrendo com diversas acusações de desinformação e má interpretação, seja na jornada da personagem transexual do título ou sobre a representação do México, onde a história acontece. E aí começa um dos maiores problemas da produção, que foi comprada pela Netflix - para distribuição nos EUA - logo após o Festival de Cannes: o filme foi completamente rodado em Paris, por desejo de Audiard.
De acordo com The Hollywood Reporter, o cineasta afirmou que foram realizadas buscas de locações no México, mas as filmagens no local limitariam demais sua visão. “Acho que foi no final da terceira visita que percebi que se trabalhasse nesses locais reais, ficaria preso ao chão. Veja bem, eu tinha todas essas imagens na minha cabeça, e essas imagens não iriam caber nas ruas do México", disse Audiard, de acordo com o THR.
Fato é que esse distanciamento proposital de Jacques Audiard trouxe problemas sérios para a relação de Emilia Pérez com o próprio México, onde o filme está sendo acusado de “não ser autêntico”, “desrespeitoso”, “xenofóbico” e “estereotipado”. “As pessoas já estavam querendo cancelar o filme por diversos problemas, mesmo antes de estrear no México”, disse o escritor e roteirista mexicano Diego Coto, em conversa com o Omelete.
O aspecto social abordado no filme foi destaque em artigo do The Guardian, que relembrou os desaparecimentos e a violência do país. Os números de feminicídio e violência contra pessoas trans são alarmantes, mas de acordo com a crítica da BBC, Gaby Meza, o filme explora essa “tragédia atual… para gerar um produto de entretenimento”. A artista de voz mexicana Vero López Treviño se junta à crítica de Meza em relação ao filme. “Vejo muitos erros, mas o maior deles é abordar esses tópicos difíceis com um tratamento musical frívolo”, disse em entrevista ao Omelete.
Essas marcas deixadas por Emilia Pérez acabam chamando a atenção até daqueles que gostaram do filme. É o caso do produtor e roteirista Charlie Barrientos, que se interessou pela temática e a abordagem, mesmo não sendo fã de musical. “Você tem que respeitar o tom e a visão do diretor para contar sua história e ele consegue coisas muito atraentes e diferentes”, disse Charlie ao Omelete. “No entanto, acho que há um problema importante relacionado às referências ao México e à maneira como elas são incluídas para contar história, especificamente com a percepção de falta de interesse nela.” A falta de estudo e pesquisa é uma das maiores críticas ao projeto e ao diretor Jacques Audiard, que declarou não ter estudado a fundo o país. “O que eu precisava saber eu já sabia um pouco”, afirmou o francês.
“Acho atroz um diretor de cinema declarar claramente que nunca estudou o México. Foi movido por clichês? Que tipo de profissional é esse que não quer saber sobre um país sobre o qual ele iria falar? E superficialmente fala em seu filme sobre uma situação (múltiplas mortes) que realmente fere um país inteiro”, protestou Vero sobre a fala de Audiard. “É como sentir uma violação da sua privacidade, como se alguém viesse e representasse sua própria casa em um set, sem tê-la visitado”, afirmou Charlie Barrientos sobre a falta de interesse em estudar mais sobre o local onde o filme se passa. “A forma como a história fala e pensa sobre os narcotraficantes, por exemplo. Pode não parecer grande coisa, mas é como se fizéssemos um filme nos EUA e chamássemos o FBI de CIA e coisas assim”, comparou Diego Coto.
O que muitos outros mexicanos também notaram é a estranheza causada pelas atuações e sotaques, principalmente de Selena Gomez. “Foi uma das primeiras coisas que todo mundo notou. Ninguém no México fala como Selena ou usa algumas das palavras e expressões que ela diz”, afirmou Diego Coto, acompanhado por Treviño, que chegou a afirmar que o filme deveria ser “todo dublado”. “Selena Gomez está representando uma mexicana americana dos EUA que mal consegue falar espanhol e isso acontece na vida real. Você mal consegue entender uma palavra”, disse a artista de voz acostumada com papéis em Robô Selvagem, Star Wars e outras grandes franquias.
Os problemas apontados não ficam apenas com a cantora norte-americana, nascida no Texas e com família mexicana. Karla Sofía Gascón, a protagonista da história, vive no México desde 2009, mas passou a maior parte de sua vida na Espanha, onde nasceu na cidade de Alcobendas. Já a vencedora do Globo de Ouro pelo filme, Zoë Saldaña, também é nascida nos EUA, em Nova Jersey, mas sabe falar espanhol por seus pais serem da República Dominicana. “Mesmo que elas tivessem um treinador de diálogo, você pode dizer que elas não estão nem perto de serem mexicanas”, afirmou Vero López. Para Charlie Barrientos, a culpa das críticas recai sobre a direção de Emilia Pérez. “Os atores conseguem, com seus recursos naturais e talento, executar certas sequências. Quando falamos de sotaques, interpretações e diálogos, me parece que também falta interesse da direção. É o que se pode sentir ao ver que os atores não foram solicitados ou direcionados a conseguir os sotaques que dariam essa veracidade”, contou ao Omelete.
De acordo com o The Hollywood Reporter, Jacques Audiard afirmou que ele não conseguiu encontrar atrizes no México para o filme, sobrando para Adriana Paz, que interpreta Epifania, o único destaque vindo diretamente do país norte-americano. “Vi muitas atrizes no México, conheci atrizes trans, mas simplesmente não estava funcionando”, disse. A dificuldade com o sotaque não foi ignorada no set de Emilia Pérez e Karla Sofía Gascón já falou à Rolling Stone sobre a tentativa de aperfeiçoar seus diálogos mexicanos e como gravar na França complicou ainda mais a situação. De acordo com a atriz, os mexicanos no set tinham sotaque francês.
Agora, com muitos prêmios na mão e uma exposição global, a produção e toda equipe tomaram uma posição defensiva, sinal de que o burburinho pode prejudicar a campanha na corrida ao Oscar 2025. Audiard já se pronunciou e pediu desculpas “aos que se sentiram ofendidos”. “O que eu gostaria de dizer é que não estou tentando dar respostas. Cinema não oferece respostas, apenas traz perguntas. E talvez essas perguntas oferecidas por Emilia Pérez estejam incorretas. Eu não queria e não quero ser pretensioso", disse o diretor na Cinemateca Nacional do México.
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Em meio a tudo isso, Karla, a primeira mulher assumidamente trans a receber uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz, sofreu diversos ataques transfóbicos desde que Emilia Pérez tomou a dianteira na temporada de premiações, incluindo de “torcedores” do brasileiro Ainda Estou Aqui. O comportamento com o filme mostra a tradicional polaridade de opiniões no ambiente digital, que muitas vezes remete mais ao comportamento de torcidas organizadas. Os ataques geraram, inclusive, uma aliança virtual entre mexicanos e brasileiros, ao mesmo tempo em que declarações de Gascón e Fernanda Torres, que pediu que os ataques, por parte de seus apoiadores, cessassem. “[...] o que eu quero dizer é que todo mundo ali merece, e merece o carinho da gente, não vamos alimentar ódio. E quero dizer: Karla Sofía Gascón, te amo para sempre. Uma mulher generosa, talentosa, que merece da gente todo nosso carinho ", disse a brasileira em publicação nas suas redes sociais.
O que Audiard, Gascón e as estrelas do filme não podem negar é a legitimidade do protesto daqueles que se veem retratados em seu filme, seja ele uma “ópera irrealista” ou não. A possibilidade de Emilia Pérez ser, atualmente, o maior favorito ao Oscar mexe com os sentimentos dos mexicanos. Para a artista Vero López Treviño será um erro absoluto. “Um aumento da nossa imagem já pisoteada perante o mundo, que acabará sendo usada para alimentar o racismo, a violência e o desdém ao povo mexicano em outros países”, protesta, enquanto o roteirista e produtor Charlie Barrientos, acredita que o prêmio que não significa nada, apenas mais uma história distante da realidade, que mesmo com uma boa premissa e uma visão diferente de uma problema comum da sociedade mexicana, apenas gerará polêmica e curiosidade mórbida. “O que é fato é que, no próprio México, continuam sendo contadas histórias que retratam de forma coerente e inteligente a situação cultural, social e histórica do nosso país, seja no drama ou na comédia”, disse Charlie. “No final, essas produções pesarão mais que um filme que talvez só tenha mesmo gerado polêmica”.