Ano passado, escrevi que a Netflix havia finalmente cedido aos cinemas ao concordar com uma janela exclusiva de lançamento em IMAX para o novo As Crônicas de Nárnia, dirigido por Greta Gerwig. De lá pra cá, esse tópico, da relação do streaming com as telonas, passou por uma série de altos e baixos, culminando num hit sem precedentes: Guerreiras do K-Pop foi o filme #1 na bilheteria dos EUA... dois meses depois de sair na Netflix.
A verdade é que, por algum tempo, parecia que aquele artigo ia envelhecer mal. Em abril, o CEO da Netflix, Ted Sarandos, mais uma vez insistiu que cinema é algo ultrapassado. Mas, contudo, todavia, entretanto... aqui estamos. Guerreiras do K-Pop, um filme da Sony Pictures Animation (mesmo estúdio de Aranhaverso) foi jogado para o streaming como parte de um acordo entre a Sony e Netflix (o mesmo que levou Família Mitchell e a Revolta das Máquinas ao catálogo), e está a caminho de virar o maior "original" de todos os tempos na plataforma.
Se isso já não fosse o suficiente para fazer a Sony se arrepender de não ter colocado a animação, onde um grupo de k-pop usa a música para derrotar demônios da mitologia coreana, então os números do último fim de semana com certeza farão. A versão "sing-along" do filme, uma que tem as letras da músicas para que o público cante junto, arrecadou US$ 18 milhões e foi o maior sucesso da semana.
O que o lançamento de Guerrerias do K-Pop nos cinemas revela
O cinema tem algo que a Netflix nunca terá: o gostinho de um evento. A sensação de entrar num lugar especial com pessoas igualmente ansiosas por aquela experiência e desfrutar daquilo tudo junto. Quem não lembra de uma sessão memorável de Vingadores: Ultimato? Ou de perceber todo mundo tomando susto ao mesmo tempo em algo como Invocação do Mal? Agora, pela primeira vez, a Netflix sentiu esse gostinho. Mais do que bilheteria, o cinema ainda é incomparável no quesito de ajudar um filme a deixar sua marca na cultura do momento.
Agora, é possível argumentar que Guerreiras do K-Pop não seria o mesmo fenômeno se não tivesse saído primeiro em casa, onde pais podem mostrar o filme quantas vezes os filhos quiserem. O fator repetição ajuda na hora de memorizar as letras de "Golden" e outras músicas, e essa compulsão não é a mesma coisa nos cinemas.
Ao mesmo tempo, não faltam exemplos de filmes que fazem o mesmo. Quem lembra quando "Não Falamos do Bruno?" estava em todo lugar após o lançamento de Encanto? E o que dizer dos filmes de Moana? Mas, vamos seguir o exercício. Guerreiras do K-Pop não tem a marca da Disney ao seu lado, e poderia facilmente ter perdido espaço em meio aos lançamentos mais garantidos dos últimos meses.* Mas mesmo que aceitemos essa premissa, o sucesso de bilheteria do filme traz aprendizados que a Netflix precisa tomar pra si, e mostra que o lançamento nos cinemas não precisa, necessariamente, preceder o lançamento em streaming.
*Ou não! Sabe qual animação saiu no mesmo dia que Guerreiras do K-Pop, 20 de junho? Elio, da Pixar. Um dos maiores flops do ano. Havia espaço, sim, para um concorrente sair por cima e tomar o público infantil.
Na verdade, lançar um filme nos cinemas quando ele já se provou um sucesso na Netflix parece ser uma estratégia viável, a depender do projeto em questão. Algo que parece feito para televisão como, digamos, Um Maluco no Golfe 2, provavelmente não teria o mesmo efeito de um blockbuster empolgante como Guerreiras do K-Pop. Numa situação como esta, porém, onde o fator "multidão" eleva a experiência do filme, seria no mínimo curioso se a Netflix não voltasse a arriscar algo do tipo.
E seria chocante se a Netflix não considerasse ao menos lançar Guerreiras do K-Pop 2 (ou uma adaptação live-action do filme) nas telonas. Isso, francamente, é jogar dinheiro fora.
A Netflix já sabe que precisa do cinema (mas a teimosia atrapalha)
Tão significativo quanto o resultado da bilheteria, porém, foi a resposta da Netflix. Na meia noite do domingo (24) para a segunda (25), quando o sucesso do filme em cartaz já havia sido amplamente reportado, a Netflix lançou a versão "sing-along" de Guerreiras do K-Pop no streaming. É uma ação que mostra a teimosia da empresa em aceitar a realidade, já que o natural diante do resultado positivo seria não só garantir um segundo fim de semana de sessões, como expandir para mais cinemas e, por que não, para mercados além dos EUA.
Essa insistência em fingir que o cinema não é um fator importante já custou caro à Netflix. Este ano, os irmãos Matt e Ross Duffer, criadores de Stranger Things, assinaram um contrato com a Paramount e sairão da casa que os abriga há praticamente uma década. Uma das razões de sua saída? A vontade de fazer projetos para o cinema.
Quais são os próximos filmes da Netflix nos cinemas?
Netflix vai lançar alguns de seus filmes de fim de ano nos cinemas (Jay Kelly, Casa de Dinamite e Frankenstein de Guillermo del Toro), prática até comum já que é obrigatório colocar os títulos em cartaz por pelo menos duas semanas antes de saírem no streaming para garantir eligibilidade ao Oscar. Mas há uma diferença, aqui.
Com (muita) insistência de del Toro, Frankenstein terá três semanas em cartaz, e não só duas*. É um lançamento por mais tempo, e em mais salas. Talvez seja um reconhecimento do potencial de arrecadar com uma franquia de terror que sairá justamente em outubro, talvez seja um agradecimento pelo feito do diretor que trouxe um Oscar de Melhor Animação para a Netflix, e talvez seja uma rendição. Cinema é cinema. Provavelmente é um pouco dos três.
*No Brasil, só serão duas semanas. A estreia é em 23 de outubro, e o lançamento na Netflix virá em 7 de novembro.
Então, há Nárnia. Gerwig fez o impossível ao fazer a Netflix concordar em colocar um filme por um mês em cartaz no IMAX. Ted Sarandos deve ter assinado esse contrato com raiva. Mas, hoje, depois de ver o que Guerreiras do K-Pop fez, ele precisa reconhecer: se a Netflix quer dominar o entretenimento, ela precisa dos cinemas.