Quando a Netflix lançou Glass Onion: Um Mistério Knives Out nos cinemas em 2022, a continuação de Entre Facas e Segredos arrecadou estimados US$ 13 milhões mesmo saindo em pouco mais de 600 salas nos EUA, um número significativamente pequeno. A demanda foi alta, e as sessões poucas. Tudo se esgotou. Um sucesso. Historicamente, o streaming só coloca seus filmes no circuito de exibição quando há a intenção de buscar indicações no Oscar (a Academia requer pelo menos duas semanas em cartaz), mas ali havia uma prova de que talvez isso devesse ser mais explorado.
Não importou. O co-CEO da empresa, Ted Sarandos, insistiu que o lançamento nos cinemas é ineficiente pouco tempo depois. E apesar do apetite visível do público por Glass Onion, o tempo do filme nas telonas não foi estendido. Tamanha era a certeza da Netflix. Mesmo quando cineastas como Martin Scorsese e David Fincher dirigiam filmes caríssimos, mesmo quando os diretores de Vingadores: Ultimato e Guerra Infinita preparavam um blockbuster com estrelas enormes, esses filmes, no máximo, ficavam 15 dias em cartaz, com poucas salas disponíveis, e depois eram destinados (condenados?) a uma eternidade sujeitos aos algorítmos do catálogo.
Agora, pouco mais de dois anos depois do lançamento de Glass Onion, a Netflix enfim cedeu. Graças ao sucesso de Barbie, em 2026, ela fará seu primeiro grande lançamento nos cinemas. Não haverá como voltar atrás.
Ted Sarandos, CEO da Netflix
A responsável por quebrar as muralhas da Netflix foi Greta Gerwig. A diretora e roteirista de Barbie, que arrecadou mais de US$ 1.5 bilhão e virou um fenômeno genuíno, assinou com a produtora para adaptar os livros de As Crônicas de Nárnia para pelo menos dois filmes, e o primeiro chega no fim novembro de 2026 em pelo menos mil salas IMAX no mundo todo. O filme terá pelo menos duas semanas garantidas de exibições em IMAX, com uma terceira semana disponível caso haja demanda (spoiler: haverá), e uma quarta semana, com sessões em salas normais, não foi descartada. Haverá, também, uma grande campanha de marketing.
O lançamento do novo Nárnia na Netflix só virá um mês depois, no Natal de 2026.
É um acordo sem precedentes, e um que Gerwig ajudou a negociar diretamente. A diretora, seus parceiros de produção e agentes foram a ponte entre Netflix e IMAX, e também precisaram convencer as redes de cinemas que carregam salas IMAX a aceitar a ideia, já que estas tipicamente são anti-Netflix devido exatamente à resistência da empresa de lançar seus projetos na telona.
É claro que a situação de Gerwig é única. Após Barbie, ela tem um dos maiores cheques-em-branco da história do cinema norte-americano. Sua influência nunca foi maior. Também não é nenhum acidente que isso aconteça pouco depois da Netflix quebrar a cara nas negociações para adquirir a nova adaptação Morro dos Ventos Uivantes, filme da diretora de Saltburn com ninguém menos que a própria Barbie: Margot Robbie. A razão? Robbie e sua turma preferiram os cinemas aos US$ 150 milhões garantidos pela gigante de tecnologia.
Greta Gerwig e Margot Robbie nos bastidores de Barbie
É tentador justificar a decisão de Robbie unicamente do ponto de vista artístico, o que não é totalmente incorreto. O cinema impede que filmes sejam vistos como "conteúdo", garantem a melhor qualidade de imagem e som, e adicionam um ar de grandeza à experiência. O principal benefício disso é que a história sendo contada ali não vira apenas mais uma distração no mesmo aparelho onde você usa o TikTok. Diferente do que acontece com séries, algo já tipicamente associado à casa e ao sofá, a Netflix não conseguiu emplacar um fenômeno cultural com filmes como aconteceu nos casos de, digamos, Barbie, Top Gun: Maverick, Avatar: O Caminho da Água e tantos outros lançamentos recentes. O cinema faz falta.
Mas a razão não é unicamente artística. Há números por trás disso, e eles explicam porque agora a Netflix vai colocar Nárnia no cinema. Em suma: quando um filme passa pelos cinemas antes de ir para streaming, ele faz mais sucesso do que algo colocado diretamente nas plataformas digitais. É fácil romantizar o cinema pela arte, mas o fato é que essa romantização também tem um efeito mercadológico e a Netflix já tem se beneficiado disso quando um filme da Warner, Universal ou outro estúdio chega no app.
O que vai acontecer se, em 2026, Nárnia for um sucesso de bilheteria e depois virar um hit no streaming, maior do que boa parte dos filmes que pulam diretamente para o catálogo? De cara, duas coisas. Primeiro, outros cineastas e atores vão passar a exigir um tratamento semelhante para suas grandes produções, tanto por conta do dinheiro quanto porque a maioria ainda valoriza a experiência cinematográfica como algo essencial para seu trabalho. Segundo, a Netflix terá que trabalhar duro para encontrar outra justificativa para continuar evitando as salas.
É claro que filmes mais baratos, menos comerciais ou menos ambiciosos ainda ficarão longe do cinema. A próxima comédia romântica da Netflix não será exibida em IMAX. Mas Nárnia 2? Outros projetos que custam US$ 200 milhões como foi o caso de Agente Oculto e afins? O cinema passará a ser uma garantia a mais para o sucesso. Sim, isso vai contra tudo que a Netflix disse até hoje. Mas em Hollywood, nada fala mais alto do que o sucesso.