J.K. Rowling

Créditos da imagem: Shaun Curry/AFP

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J.K. Rowling e transfobia: entenda a polêmica

Comentários controversos da autora da saga Harry Potter geraram duras críticas dos fãs e de atores envolvidos com projetos do Universo Bruxo

16.06.2020, às 17H41.
Atualizada em 08.07.2020, ÀS 11H45

Não é de hoje que a escritora J.K. Rowling tem protagonizado polêmicas nas redes sociais. Como uma usuária ativa do Twitter, seus comentários costumam causar algum tipo de controvérsia, esteja ela falando sobre a saga Harry Potter ou dando seus posicionamentos políticos. Na última semana, porém, a autora esteve no centro de um debate intenso sobre transfobia, que envolveu não apenas seus seguidores e fãs, como também membros dos elencos das franquias do Universo Bruxo.

Confira a seguir como se desenrolou essa polêmica:

MAS, PRIMEIRO, O QUE É TRANSFOBIA?

Em linhas bem gerais, transfobia é o preconceito e o ódio contra pessoas trans. Ele pode se manifestar em atos discriminatórios de violência física, psicológica ou moral.

Este é um assunto bastante sério, principalmente aqui no Brasil. Somos um dos países que mais mata a população trans no mundo. Em 2019, foram 132 assassinatos, de acordo com levantamento da Transgender Europe. Neste mesmo ano, estima-se que, a cada dia, 11 pessoas trans sofreram agressões simplesmente por serem trans (via Agência Brasil).

O COMEÇO

Toda a história começou com um comentário de J.K. Rowling sobre uma matéria que tinha no seu título a expressão "pessoas que menstruam". A autora criticou o uso destes termos, dando a entender que "mulheres" daria conta de explicar a quem o texto estava se referindo. Porém, a matéria tinha como objetivo ser inclusiva, contemplando homens trans que nasceram com o sexo biológico feminino e, por isso, também menstruam.

A partir de então, Rowling começou a justificar sua posição, isto é, que não se pode negar o sexo biológico, porque ele seria determinante para a sua experiência. No Twitter, ela escreveu:

"Se sexo não é real, não existe atração entre pessoas do mesmo sexo. Se sexo não é real, a realidade vivida por mulheres ao redor do mundo é apagada. Conheço e amo pessoas trans, mas apagar o conceito de sexo remove a habilidade de muitos discutirem suas vidas de forma significativa. Não é ódio dizer a verdade".

"A ideia de que mulheres como eu, que têm empatia por pessoas trans há décadas e sentem afinidade por elas, porque são vulneráveis do mesmo modo como as mulheres - isto é, à violência masculina - 'odeiam' pessoas trans porque pensam que sexo é real e vivem as consequências disso é um absurdo".

"Respeito o direito de todas as pessoas trans de viverem da maneira que lhes pareça autêntica e mais confortável. Protestaria com vocês se vocês fossem discriminados por serem trans. Ao mesmo tempo, minha vida foi moldada pelo fato de eu ser mulher. Não acredito que seja odioso dizer isso". 

QUAL É O PROBLEMA?

O que Rowling basicamente diz nestes tweets é que a identidade de gênero das pessoas - isto é, se a pessoa se identifica como homem, mulher ou não-binária - é definida exclusivamente pelo sexo biológico. Essa ideia, portanto, não reconheceria a existência da população trans, nem qualquer pessoa que não fosse cisgênero, como as não-binárias, já que estas são justamente pessoas que não se identificam com seu sexo biológico.

Infelizmente, esta visão de Rowling é um dos argumentos usados para a ofensa, discriminação e até violência física direcionada à população trans. Por isso, quer seu posicionamento seja bem-intencionado ou não, ele é problemático.

REPERCUSSÃO ENTRE OS FÃS

Os comentários, claro, tiveram muita repercussão nas redes sociais. Muitos fãs se disseram decepcionados com a postura de Rowling a tal ponto que chegou a virar meme a ideia de que ela não é mais a autora da saga Harry Potter, mas sim personalidades como Shakira, Kylie Minogue e até a Emma Watson.

"Amo essa foto da Shakira (autora de Harry Potter" com a Hermione e o Ron depois de eles serem escalados para o filme", escreveu um usuário.

A RESPOSTA DE DANIEL RADCLIFFE

Daniel Radcliffe em Harry Potter
Warner Bros./Divulgação

Daniel Radcliffe saiu em defesa da população trans depois dos comentários de Rowling. No site do Trevor Project, uma organização sem fins lucrativos que trabalha na prevenção do suicídio da juventude LGBTQ+, o ator escreveu um longo texto reconhecendo a importância da autora na sua vida, porém afirmando categoricamente que "mulheres trans são mulheres". Confira um trecho a seguir:

"Mulheres trans são mulheres. Qualquer afirmação que diga o contrário apaga a identidade e a dignidade da população trans e vai contra todos os conselhos dados por associações de profissionais de saúde, que sabem muito mais sobre o assunto do que eu ou a Jo. De acordo com o Trevor Project, 78% da juventude trans e não-binária é vítima de discriminação por sua identidade de gênero. É evidente que precisamos fazer mais para apoiar as pessoas trans e não-binárias, não invalidar suas identidades e causar mais dano".

O ator pediu desculpas aos fãs que se sentiram atacados pelos comentários de Rowling e disse torcer para que isso não comprometa o envolvimento deles com a saga Harry Potter. "Se você encontrou algo nessas histórias que ressoou em você e o ajudou em algum momento da sua vida, isso é entre você e o livro. Isso é sagrado. Na minha opinião, ninguém pode interferir nisso".

O “ESCLARECIMENTO” DE ROWLING

J.K. Rowling
Shaun Curry/AFP

Dias depois de Radcliffe se manifestar, Rowling usou seu blog para esclarecer seu posicionamento. No entanto, seu texto causou mais controvérsia do que os tweets anteriores.

No artigo, a autora explicou que já há anos pesquisa sobre sexo e identidade de gênero, mas que apenas se manifestou publicamente sobre o assunto após a demissão da especialista tributária Maya Forstater do Centro de Desenvolvimento Global. A razão para o desligamento foram tweets de Forstater em que ela afirmava que as pessoas não podem alterar seu sexo biológico, uma visão que Rowling apoia.

A escritora, então, disse ter sido “cancelada pela quinta vez”, além de ser alvo de ameaças de violência, xingamentos e críticas, razão pela qual ela decidiu se afastar das redes sociais por um tempo. Quando voltou para falar sobre ilustrações de um livro infantil, os comentários de ativistas trans ressurgiram, chamando-a, dentre outros termos, de TERF.

Aqui vale um parêntesis: TERF é um acrônimo em inglês para Feministas Radicais Trans-Excludentes, ou seja, pessoas que não consideram mulheres trans mulheres. Este é um termo que Rowling disse não gostar porque, segundo ela, intimida instituições e organizações que não têm o mesmo ponto de vista que os ativistas trans, e porque presume que todas as pessoas que compartilham dessa visão sejam feministas radicais - algo que ela diz não ser verdade.

Rowling, então, listou os motivos pelos quais se sente preocupada com o ativismo trans e acha necessário se posicionar, dentre eles a liberdade de expressão e o aumento do interesse de jovens mulheres em transicionar. Para ela, essa vontade dos jovens de passar por cirurgias e terapias com hormônios envolve um sentimento de inadequação - por exemplo, famílias que não aceitam a homossexualidade e, portanto, a transição seria a única maneira delas serem aceitas pelos pais - e a persuasão de grupos de amigos.

"Quero ser muito clara aqui: sei que a transição será a solução para algumas pessoas com disforia de gênero, embora também esteja ciente que pesquisas extensivas mostram que entre 60% e 90% dos adolescentes com disforia de gênero a superarão", escreveu Rowling.

A autora, então, ressaltou que vivemos em um momento extremamente misógino, no qual impera uma resistência ao feminismo e uma cultura online saturada pela indústria pornográfica. "Desde o líder do mundo livre e seu longo histórico de acusações de assédio sexual [...], o movimento incel que se enfurece contra mulheres que não lhes oferecem sexo, os ativistas trans que declaram que as TERFs precisam de socos e reeducação, homens em todo o espectro político parecem concordar: as mulheres estão pedindo por problemas. Em todo o lugar, as mulheres estão ouvindo que devem se calar, se sentar ou algo do tipo", analisou.

Com esse contexto em mente, ela entende que negar o sexo seria uma maneira de impedir que as mulheres se organizem enquanto classe política, além de acreditar que a proposta se baseia em argumentos que considera misóginos e regressivos. Ela também chega a sugerir que este tipo de posicionamento diante do entendimento do que é sexo biológico e identidade de gênero poderia beneficiar predadores sexuais. Por isso, a escritora disse que não vai “se curvar ao movimento”, referindo-se ao ativismo trans.

Rowling admite que a população trans é bastante vulnerável e que, como as mulheres, tem grandes chances de ser assassinada por parceiros sexuais. “Pessoas trans precisam e merecem proteção”, afirmou. “Mulheres trans que trabalham na indústria sexual, principalmente as não-brancas, correm ainda mais riscos. Como toda sobrevivente de abuso doméstico e sexual que conheço, sinto nada além de empatia e solidariedade às mulheres que foram abusadas por homens. Então quero que as mulheres trans estejam seguras. Ao mesmo tempo, não quero que meninas e mulheres de nascença estejam menos seguras”.

Ao final, Rowling pede que os leitores tenham empatia às mulheres que, como ela, só querem ser ouvidas sem serem alvo de abuso e ameaças.

A RESPOSTA DA COMUNIDADE TRANS EM HOLLYWOOD

CW/Divulgação

A fala de Rowling reverberou por Hollywood e muitas celebridades cis, como Sarah Paulson e Jonathan Van Ness, criticaram a postura da escritora. Porém, é claro que atores e atrizes trans não deixaram o texto de Rowling passar em branco.

Indya Moore, estrela de Pose, afirmou: "acredito que ela esteja falando de um lugar de pura estupidez. Quer dizer, é tão burro. Ela não entende quanta morte e violência está por trás das opiniões que ela está compartilhando nas redes sociais agora. [...] ela está contribuindo para um estigma que continua a tomar as nossas vidas hoje".

Também de Pose, MJ Rodriguez disse: "é realmente importante se distanciar de pessoas assim. Elas claramente estão presas em uma lacuna geracional para entender algo. Estamos em uma época diferente".

Nicole Maines, a primeira atriz trans a fazer uma super-heroína na TV, escreveu um texto para a Variety intitulado "Por que ainda sou fã de Harry Potter apesar da visão antitrans de J.K. Rowling". No artigo, Maines compartilha um pouco da sua experiência pessoal diante de argumentos como o da autora de Harry Potter e explica que a visão de Rowling é simplista, por trabalhar sexo e identidade de gênero como elementos absolutos - isso tudo além de desmentir algumas informações dadas pela escritora.

"Não, eu não apenas 'decidi': tive que me provar e reforçar minha identidade para estranhos, pessoas da minha família, psiquiatras, amigos, pares, colegas e para minha comunidade de novo e de novo", escreveu Maines.

Para ela, os comentários de Rowling vão contra a própria ideia da autora na saga Harry Potter. "[Os livros são] sobre sermos mais fortes juntos, inclusão, autodescoberta, coragem e triunfo diante das adversidades. É contraditório com o mundo que ela criou".

Por fim, Maines, Sonserina declarada, se disse ainda ser fã da franquia. "Esses livros e sua mensagem ainda existem, e qualquer opinião pessoal de Rowling não tirará isso de nós. Ninguém pode tirar isso de nós, esse mundo realmente pertence aos fãs. Ninguém pode mudar se eles nos ajudaram a nos assumir. Isso pertence a vocês".

A RESPOSTA DE EMMA WATSON

A atriz Emma Watson, então, se manifestou sobre o novo texto de Rowling. Além de se posicionar de forma contrária às ideias da escritora, Watson estimulou que seus fãs fizessem doações para instituições dedicadas a ajudar pessoas trans.

"Pessoas trans são quem dizem ser e merecem viver suas vidas sem serem constantemente questionadas ou terem que ouvir que elas não são quem dizem ser".

"Quero que meus seguidores trans saibam que eu e muitas outras pessoas ao redor do mundo vemos, respeitamos e amamos vocês".

A RESPOSTA DE EDDIE REDMAYNE

Eddie Redmayne em Animais Fantásticos e Onde Habitam
Warner Bros./Divulgação

O ator Eddie Redmayne, o Newt Scamander de Animais Fantásticos, também se posicionou neste debate. Ele, que foi indicado ao Oscar por interpretar uma mulher trans no longa A Garota Dinamarquesa, afirmou:

"O respeito pelas pessoas trans continua um imperativo na nossa cultura, e através dos anos eu busquei me educar na questão constantemente. É um processo contínuo", explicou.

"Como alguém que trabalhou tanto com J.K. Rowling quanto com membros da comunidade trans, eu queria deixar absolutamente clara minha posição. Eu discordo dos comentários de Jo. Mulheres trans são mulheres, homens trans são homens e identidades não-binárias são válidas. Eu nunca falaria em nome da comunidade, mas eu sei que meus amigos e colegas trans estão cansados deste questionamento constante sobre suas identidades, que muito frequentemente levam à violência e abuso. Eles simplesmente querem viver suas vidas em paz, e é hora deles poderem fazer isso".

A RESPOSTA DE RUPERT GRINT

Rupert Grint
Warner Bros./Divulgação

O ator Rupert Grint também se juntou ao coro que saiu em defesa da comunidade trans. Em nota, ele disse: "me posiciono firmemente ao lado da comunidade trans e compartilho dos sentimentos de muitos dos meus pares. Todos deveríamos ter o direito de viver com amor e sem julgamento".

A POSIÇÃO DA WARNER

Por fim, até mesmo a Warner Bros., responsável pela produção e distribuição de toda a franquia Harry Potter e dos derivados Animais Fantásticos no cinema, liberou um posicionamento oficial sobre o assunto. Confira:

"Os eventos das últimas semanas fortaleceram nosso compromisso enquanto companhia em enfrentar problemas sociais difíceis. A posição da Warner Bros. em relação a inclusão está bem estabelecida, e adotar uma cultura mais diversa e inclusiva nunca foi tão importante para a empresa e públicos ao redor do mundo. Valorizamos muito nossos contadores de histórias que dão tanto de si para dividir suas criações conosco. Reconhecemos nossa responsabilidade de mostrar empatia e defender a compreensão de todas as comunidades e pessoas, particularmente aquelas com quem trabalhamos e aqueles que alcançamos com nosso conteúdo".

Funcionários da editora Hachette protestam

Parte da equipe da editora Hachette, responsável pela publicação do livro infantil de Rowling O Ickabog, se recusou a voltar a trabalhar na obra em razão da postura da escritora.

Sobre a posição do que chama de "um punhado de funcionários", a editora disse:

"Nós acreditamos que todos têm o direito de expressar livremente suas crenças e pensamentos. Por isso não comentamos nas visões pessoais de nossos autores e respeitamos o direito de nossos funcionários expressarem seu ponto de vista". A editora disse também que jamais obrigaria seus funcionários a trabalharem em um livro que possa lhes causar incômodo, mas que há "uma diferença entre isso e se recusar a trabalhar por discordar da opinião de um escritor".

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