A última semana de janeiro marcou o início do fim para a campanha de Emilia Pérez no Oscar 2025. Após boas horas circulando pelo Twitter, os prints de postagens de cunho racista e xenofóbico assinadas pela estrela Karla Sofía Gascón em suas redes sociais, anos antes de protagonizar o musical de Jacques Audiard, começaram a aparecer na grande mídia estadunidense no dia 30. Nas horas que se seguiram, não só as chances de Gascón vencer a estatueta naufragaram, como também as de Audiard ganhar Melhor Direção tropeçaram diante do surgimento de outra entrevista polêmica, e o brilho que o filme tinha adquirido desde a estreia premiada no Festival de Cannes 2024 foi dando lugar a uma aura venenosa que ameaçava destruir tudo e todos que a tocassem.
É claro, a máquina de promoção da Netflix – responsável pela distribuição do filme nos EUA, e por administrar sua campanha – , começou a fazer hora extra instantaneamente. Conforme os dias iam passando, e Gascón ia cavando a própria cova cada vez mais fundo com as entrevistas equivocadas e destreinadas que dava a qualquer veículo que a aceitasse, a plataforma de streaming – que assumiu o lançamento estadunidense do filme já em Cannes, com a intenção clara de torná-lo a potência de prêmios que ele realmente era até aquele fatídico 30 de janeiro – tentou conter os danos arranjando espaços para Audiard dar o seu lado da história e lançando novos trailers e materiais promocionais do filme que evitavam mostrar o rosto ou citar o nome de Gascón.
Emilia Pérez passou, então, a ter outra cara: a de Zoe Saldaña. E deu certo, tendo em vista que ela acaba de vencer o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante por sua performance. Mas como chegamos aqui?
No limiar imediato do escândalo, Saldaña falou duas vezes sobre as postagens de sua colega de elenco. Na primeira, já no dia 31, a atriz declarou que “ainda estava processando” os acontecimentos, mas também tratou de afirmar sem nenhuma dúvida que “não tem tolerância para nenhuma retórica negativa em relação a pessoas de nenhum grupo”. Na segunda, no dia 5 de fevereiro, mostrou empatia, mas fez uma diferenciação estratégica: “Estou triste. Esse é o sentimento que vive em meu peito desde que tudo aconteceu. Também estou decepcionada. Não posso falar pelas ações de outras pessoas”.
Desde então, silêncio. E não só sobre isso. De fato, a campanha de Saldaña para o Oscar 2025 foi extraordinariamente discreta – ela compareceu a eventos oficiais da Academia, é claro, mas não deu tantas entrevistas, posou para capas de tantas revistas, ou teve tantos perfis publicados na mídia estadunidense, quanto suas concorrentes. Uma rápida consulta ao Google Trends sobre os hábitos de pesquisa nos EUA durante os últimos 30 dias mostra que até o nome da brasileira Fernanda Torres (uma virtual desconhecida no país antes de sua indicação a Melhor Atriz por Ainda Estou Aqui) foi mais consultado na ferramenta do que o de Saldaña.
Pode parecer contraintuitivo. Em um mundo de campanhas de Oscar intensas, quase exaustivas, manter-se calada parece uma garantia de esquecimento, mas no fim das contas essa estratégia criteriosa se mostrou absolutamente certeira. Zoe apareceu o bastante para que os votantes da Academia não esquecessem que seu nome estava no páreo, mas não o bastante para que a associassem a todo o resto da narrativa contra o filme que ela participa. Como uma presença constante, mas meio silenciosa, ela se apresentou como a via ideal para reconhecer quaisquer qualidades que os votantes tenham visto em Emilia Pérez, sem recompensar nada que agora se considerava publicamente problemático nele.
Claro que não é só uma questão ser o “bode expiatório” reverso perfeito. Emilia Pérez caiu no conceito da Academia não só por causa das polêmicas de Gascón, mas porque a tempestade de fogo sobre sua estrela ampliou o efeito de críticas que já existiam de forma insistente em torno do filme - críticas do público mexicano e das pessoas transgênero, que condenavam a obra de Audiard como um retrato míope de ambas as comunidades que pretendia representar. Diante desse desencanto, talvez, muitos votantes tenham se pegado pensando sobre o que de fato tinha lhes impressionado em Emilia Pérez, e qual trabalho de fato tinha se mostrado valoroso, mesmo com as falhas ao seu redor.
Ademais, Saldaña não é uma escolha arriscada para o Oscar. Veterana de mais de duas décadas de Hollywood, ela tem respaldo popular (seus papéis em Avatar, em Star Trek e no MCU fizeram dela uma queridinha dos nerds) e uma boa relação com a indústria, e entrega uma performance que subverte o esperado dela sem fugir demais do que é considerado “prestigioso” para uma instituição como a Academia. Talvez sabendo dessa vantagem, ela identificou que a melhor coisa que poderia fazer para vencer uma estatueta dourada era… bom, quase nada. A noite de hoje provou que ela estava certa.