Mês do Orgulho: Por que a Netflix tem cancelado tantas produções LGBTQI+?

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Mês do Orgulho: Por que a Netflix tem cancelado tantas produções LGBTQI+?

2021 marca o fim de importantes produções como Atypical, Feel Good e Special.

20.06.2021, às 09H00.

A Netflix conseguiu o que poucas marcas na história da TV conseguiram: ela se tornou um dos itens de primeira necessidade na rotina da maioria brutal dos consumidores de televisão do mundo. É curioso pensar que, de fato, a chegada das produções originais da plataforma (que antes existia como uma locadora comum e, um pouco mais tarde, como uma locadora virtual) não fez nem seu aniversário de 10 anos ainda. House of Cards, o primeiro grande título original anunciado, teve toda sua primeira temporada disponibilizada em Fevereiro de 2013. Em Julho do mesmo ano, chegava Orange is the New Black.

No início, a Netflix parecia a “terra prometida” dos roteiristas. As temporadas eram lançadas todas de uma vez (o que ajudava muito no processo de construção dos arcos), o tempo dos episódios não dependia de intervalos e, sem a obrigação de agradar anunciantes, a ousadia dos enredos era não só permitida como requisitada. Isso significava que os cancelamentos também poderiam seguir diretrizes menos rígidas. As séries tinham mais tempo para convencer o espectador, o que, na música, por exemplo, é bastante comum. Um álbum genial do Radiohead pode parecer bizarro numa primeira tentativa.

Tudo isso foi mudando com o tempo, é claro. A dependência de anunciantes que por lá nunca existiu, deu lugar à dependência por assinantes. Com a chegada da concorrência, começaram os sacrifícios. As primeiras razões foram artísticas, com Girlboss sendo cortada depois de uma primeira temporada considerada medíocre. Depois, vieram as razões comerciais, com The Get Down, que custava 100 milhões, não dando absolutamente nenhum retorno. Tudo em 2017. Estava acesa a lanterna amarela: a Netflix, essa “terra prometida”, poderia sim cancelar séries com apenas uma temporada.

De 2017 até 2021 as coisas foram mudando novamente e um fenômeno curioso se estabeleceu: mesmo que não dependesse de anunciantes, a plataforma continuava sacrificando séries elogiadas, mas que não tinham grandes números em termos de visualizações. Assim, ela se aproximou cômicamente da televisão aberta regular. Produções de caráter experimental ou direcionado foram sendo canceladas para custear títulos abrangentes (e nem sempre bons), mas que faziam muito sucesso. E quem mais saiu perdendo com isso? As narrativas sobre diversidade.

SER não é mesmo que TER

Pode parecer estranho propôr um texto sobre cancelamentos de séries LGBTQI+ e começar fazendo isso citando Orange is the New Black, que ficou no ar pelo tempo que foi planejado e era cheia de narrativas voltadas para esse nicho. Mas, aí está o ponto principal de toda essa questão. Personagens homoafetivos fazem parte da televisão americana desde os anos 90, mas eles passaram muitos e muitos anos sendo apenas coadjuvantes. Essas produções não eram sobre diversidade, elas tinham núcleos de diversidade. Problemas com isso? Nenhum, desde que isso não se torne uma cortina de fumaça que esconde um descompromisso com o SER e não apenas TER.

Orange foi um ótimo exemplo de série que privilegiava as narrativas afetivas e sexualmente plurais. Mas, será que as coisas continuam assim? Talvez o primeiro grande choque tenha sido o cancelamento de Sense 8. Criada pelas Wachowski (as mesmas de Matrix) e com Lana e Lilly, trans, sendo peças fundamentais do espírito da série, Sense 8 era filmada em pontos diferentes do globo, o que fazia com que seus custos fossem altíssimos. Aparentemente, a série também só parecia ser sucesso no Brasil. Contudo, Nomi (Jamie Clayton) era uma das primeiras personagens trans da televisão a ter sua trajetória contada de uma forma realmente privilegiada (a Sofia, de Orange, foi perdendo espaço a cada novo ano).

A questão dos custos é importante para qualquer rede de entretenimento; isso é indiscutível. Até o momento, o cancelamento de Sense 8 parecia um caso isolado e que foi até tratado com a atenção esperada da empresa: os criadores tiveram a oportunidade de produzir um longa-metragem para encerrar a história. Em um futuro próximo dali, outros títulos não teriam a mesma cortesia. A Netflix tomou a decisão consciente de absorver essa reputação de empresa gay-friendly inserindo diversidade em pitadas calculadas. Com exceção de Orange, Sex Education e do reality Queer Eye, quase tudo na plataforma TEM aspectos LGBTQI+, mas não É voltado especificamente para essas comunidades.

Atípico, especial e faz bem

2021 está sendo um ano de baixas inacreditáveis. Special e Feel Good chegaram ao fim uma depois da outra, ambas em suas segundas temporadas e sem nenhuma devida promoção e reconhecimento de suas qualidades. Atypical, com um pouco mais de tempo de tela, chegará ao fim logo adiante. Elas se juntam a uma lista impressionante que conta com I'm Not Okay With This, Everything Sucks, The Society, One Day at a Time, AJ And The Queen e por aí vai... Custos altos ou problemas com a pandemia acabam sendo argumentos frágeis, já que muitas dessas produções não tem nem 0,5% do orçamento de gigantes como Stranger Things (que não importa o cenário pandêmico, terá sua nova temporada saída do papel).

O motivo maior continua sendo a audiência e aí, infelizmente, a argumentação encontra uma obviedade inconveniente: narrativas sobre personagens gays e trans nunca terão a mesma audiência que uma série com tramas heteronormativas. Isso porque é impossível brigar com estatísticas demográficas. “Ah, mas Glee tinha uma monte de personagens gays e foi um sucesso”; sim, mas seus protagonistas tinham bases que sustentavam um fandom hetero. Special e Feel Good, especificamente, são totalmente sustentadas em personagens e tramas direcionadas à minorias. Faz sentido para mim, então, que uma empresa que se disponha a produzir histórias assim, já saiba de antemão que a audiência delas não pode ser comparada com La Casa de Papel ou Bridgerton.

A impressão é que séries como Special e Feel Good já estreiam com sentença de cancelamento definida. Elas funcionam como uma “cota” que mantém a reputação e que quando vão embora, não arranham a reputação da empresa, uma vez que a audiência já é inicialmente modesta. Contudo, tanto Special quando Feel Good são incrivelmente bem escritas, bem dirigidas, têm enredos divertidos e ao mesmo tempo comoventes; são importantes pontos de representatividade, talvez dos maiores. O protagonista de Special é gay e tem paralisia cerebral, a protagonista de Feel Good é uma personagem não-binária... É CLARO que essas séries não terão grande audiência, elas falam para pessoas que precisaram esperar muito para se verem representadas na TV. É justo, então, apenas “fingir” que elas merecem estar no ar?

Não vamos culpar apenas a Netflix por isso. The New Normal foi cruelmente cancelada pela NBC e mesmo tendo tido o respeito de dar a Looking o seu filme, é inadmissível que a HBO tenha cancelado a série depois de duas temporadas e esteja aí, gastando rios de dinheiro para fazer o engodo que é Westworld acontecer. O fato é que na hora de abrir mão de alguma coisa, quem paga são as narrativas feitas para minorias. E é o que pode acontecer com a maravilhosa Love, Victor, que contando a mesma história de liberdade, conseguiu ser sensível, delicada e inteligente. Essas histórias de protagonismo homo e transafetivo não podem ser sempre a primeira opção de corte.

Mas, espera um pouco. Por que, na verdade, isso é tão importante?

We Will Survive

Alguma vez você já se perguntou “por que histórias heteronormativas são importantes”? Não; e por um motivo muito simples: não se costuma questionar a presença de coisas que já estão culturalmente estabelecidas. Não existe nenhuma problematização sobre a condição da heterossexualidade, por exemplo, porque essa é uma condição instituída e aprovada em todas as principais vertentes que mantém a ordem social: religiosa, comportamental e legislativa.

O mesmo deveria ser estendido aos que nascem fora desse enquadramento. Sendo assim, é curioso que alguns se perguntem “por que tanto personagem gay na TV?”. Essa pergunta, por si só, vem de um lugar de incômodo que precisa ser vistoriado. Afinal de contas, o quão inconveniente seria sair por aí perguntando “por que tantos personagens heterossexuais na TV?”. Ainda é necessário, inclusive, fazer textos como esse justamente porque ainda não chegamos no ponto da estrada em que as narrativas de diversidade serão naturalizadas. Se todos esses cancelamentos não estão levando em consideração um público que anseia – e precisa – de representatividade TOTAL, então, essa cobrança ainda se faz necessária.

Na balança dos espelhos ficcionais disponíveis no mercado, não estamos nem perto de encontrar equilíbrio. Parar de cancelar os que nos restam já seria uma espécie de começo.

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