Matt Smith em cena de A Casa do Dragão (Reprodução)

Créditos da imagem: Matt Smith em cena de A Casa do Dragão (Reprodução)

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A Casa do Dragão é herdeira legítima de Game of Thrones… no pior dos sentidos

Spin-off se congratula pela própria ousadia, mas esquece de buscar insight sobre seus temas

Omelete
7 min de leitura
22.09.2022, às 13H39.
Atualizada em 27.09.2022, ÀS 13H02

Game of Thrones era, em seu melhor, uma história sobre tempo, crença e opressão. O tempo que transformava a sorte das casas e a hierarquia de poder de Westeros, mas também o próprio ecossistema emocional dos personagens. A crença que guiava cada uma das escolhas que eles faziam dentro da história, seja essa crença religiosa, política, familiar… todo mundo acredita em alguma coisa, no fim das contas. E a opressão que, por vezes, os colocava contra a parede e apresentava um curso de ação violento, quase de destruição mútua, como o único possível.

Em seu pior, enquanto isso, o megahit da HBO era simplesmente um exercício de autocongratulação. Não surpreende ninguém dizer que esse lado vazio e puramente egocêntrico de Game of Thrones ficou mais em evidência nas temporadas finais, mas ele sempre esteve ali. Basta lembrar da forma como Jon Snow (Kit Harington) foi trazido de volta à vida para… para quê mesmo? Uma ressurreição que gerou hype, com certeza, mas que também retomou um arco de personagem que já havia se fechado com elegância e condenou o pobre bastardo Stark a vagar por Westeros sem uma função narrativa muito clara pelo resto da série.

Kit Harington em cena de Game of Thrones (Reprodução)
Kit Harington em cena de Game of Thrones (Reprodução)

Destino não muito melhor sofreu Tyrion (Peter Dinklage) após ser removido da corte de Porto Real, passando temporadas a fio atirado aos caprichos do destino até encontrar Daenerys (Emilia Clarke) e… por algum motivo… apostar todas as suas fichas na competência dela para governar. Fato é que D.B. Weiss e David Benioff terem jogado os temas de sua criação para o alto a fim de um valor de choque despropositado, terem testado a paciência do público com viradas de personagem que desfizeram anos de desenvolvimento, não deveria ter sido tão surpreendente assim.

Essa Game of Thrones da surpresa pela surpresa, da violência pela violência, do sexo pelo sexo, da opulência pela opulência, da isca de Emmy pela isca de Emmy, da convicção absoluta de que é invencível e inatacável, é tanto um monstro criado pelo sucesso fora de proporção da série em meios populares e acadêmicos quanto uma revelação da natureza dos artistas que estavam no comando da história. Temas são para relatórios de leitura da oitava série”, disse Benioff em entrevista famosa de 2011, ano de estreia de Thrones.

O curioso é que ele e seu colega de roteiro não conseguiram contar uma história sem temas - porque é claro que não conseguiram. É da natureza do contar histórias que venham à superfície ideias e observações sobre o que é ser humano. Não importa quantos dragões voem sobre Westeros, a “canção de gelo e fogo” de George R.R. Martin é na verdade sobre nós, que vivemos aqui, nesse mundo totalmente desprovido de lagartos gigantes cuspidores de fogo, mas abarrotado com as emoções e angústias que assolam os personagens de Thrones.

O que Benioff e Weiss fizeram foi desnudar essa história de seus temas no último segundo, deixando a série se tornar uma casca vazia e cínica que chegou mancando à linha final, não importa quantos Emmys tenha vencido.

Qual Thrones é a nova Thrones?

Paddy Considine e Milly Alcock em A Casa do Dragão (Reprodução)
Paddy Considine e Milly Alcock em A Casa do Dragão (Reprodução)

A campanha de imprensa em torno de A Casa do Dragão, série derivada de Game of Thrones que estreou no mês passado pela HBO, é notável para a (pré-)continuação de um dos maiores sucessos de audiência e crítica do milênio. Isso porque, em entrevistas, tanto os showrunners Miguel Sapochnik e Ryan Condal quanto os atores de A Casa do Dragão fazem de tudo para afastar a produção da série que a originou. As cenas de sexo, a aderência ao cânone de George R.R. Martin, o papel feminino na narrativa e na produção, a duração planejada da trama… tudo é sempre posicionado como oposto à Thrones.

Em alguns sentidos, o divórcio entre as séries é bastante palpável. Parece ser fato, por exemplo, que o set de A Casa do Dragão é um ambiente mais livremente criativo, em oposição ao clima ambiguamente abusivo da produção de Game of Thrones. E existe na série, tanto atrás das câmeras quanto no texto, uma tentativa de reparar o papel ancilar e perversamente distorcido que Thrones dispensou às suas mulheres, além da pouca atenção que ela original deu à mera possibilidade de diversidade racial.

Até como resultado desse esforço, os temas de A Casa do Dragão são bem diferentes dos de Thrones. Nesses primeiros cinco capítulos, ao menos, acompanhamos uma história sobre medo e privilégio, palavras facilmente atreladas aos Targaryen e seus dragões. A jogada mais astuta dos showrunners Sapochnik e Condal até agora é mostrar que os súditos dos Targaryen não são os únicos governados pelo medo - quando um soberano se coloca nessa posição através dele, o medo consome a sua vida também.

Cena de A Casa do Dragão (Reprodução)
Cena de A Casa do Dragão (Reprodução)

Daí a bravata egocêntrica de Daemon (Matt Smith), a subserviência paterna de Alicent (Emily Carey), a sinuosa ambição de Rhaenyra (Milly Alcock), o ressentimento ferrenho de Corlys (Steve Toussaint) e Rhaenys (Eve Best). Medo do privilégio dos outros, de perder o seu próprio, de ser negado ou rebaixado ou substituído, de estar sozinho. Medo que, como qualquer outro, encontra na violência um remédio temporário - mostrar força para construir a ilusão de segurança.

Onde A Casa do Dragão e Game of Thrones convergem, no entanto, talvez seja mais importante do que onde elas divergem. A confiança na grandiosidade de seus sets, seus efeitos e sua suposta superioridade técnica é realmente a chave: esta é uma série cujas escolhas servem à construção de uma ideia de si própria, ao invés de servirem à história que ela quer contar. A Casa do Dragão tem sido, nessa primeira metade de temporada, um exercício de auto-mitologia - não a mitologia de Westeros, a terra ficcional criada por Martin, mas sim a mitologia de Game of Thrones, a marca da HBO.

Os detalhes nos quais a produção se desembaraçou da antecessora, a fim de escapar do legado de uma série blockbuster quase universalmente odiada, são só isso mesmo: detalhes. A Casa do Dragão herda de Benioff e Weiss o cinismo confortável com que é escrita, trocando qualquer insight precioso sobre os temas que interroga pelo puro valor de choque do mundo cruel que retrata. Seus pulos temporais são exemplo perfeito desse desinteresse emocional: no final do segundo episódio, o rei Viserys (Paddy Considine) anuncia a sua intenção de se casar com Alicent, contrariando conselhos, enfurecendo sua filha e um dos lordes mais poderosos e ricos de Westeros.

A decisão dá início a uma guerra em uma terra distante, fratura para sempre o relacionamento de Viserys e Rhaenyra, e condena a jovem Alicent a uma vida para a qual o seu pai a empurrou (além de quebrar a sua amizade mais valiosa, é claro). Mesmo assim, quando o terceiro capítulo de A Casa do Dragão começa… são três anos depois, Viserys e Alicent já têm um filho pequeno, e a tal guerra já se aproxima de suas batalhas derradeiras. Nós não vemos a noite de núpcias do casal, onde Alicent presumivelmente perdeu a virgindade para um homem muito mais velho que ela não exatamente amava, não acompanhamos as baixas do exército de Daemon e Corlys, não entendemos se Rhaenyra confrontou o pai ou não sobre o casamento.

Emily Carey em A Casa do Dragão (Reprodução)
Emily Carey em A Casa do Dragão (Reprodução)

A Casa do Dragão, enfim, salta por cima de todas as minúcias de personagem, os processos íntimos que nos fariam entendê-los, torcer por eles, odiá-los, vibrar com suas vinganças e triunfos, nos relacionarmos com suas trajetórias pelo universo perverso que a série cria, uma extrapolação do nosso que só é realmente fantasiosa em nome e superfície. Acontece que, sem um ponto a fazer, seja ele estético ou narrativo, violência e crueldade na tela o tempo todo fazem da série um passatempo grandioso, gerador de polêmicas e memes, mas… desagradável.

Não que a ficção sempre precise ser agradável, é claro. O que ela sempre precisa ser é humana, mesmo que seja para mostrar o lado feio da humanidade. Existe espaço para e valor em histórias adultas em seu conteúdo, pessimistas em sua visão de quem somos e da vida que levamos. É importante, no entanto, que esse tipo de ficção investigue para onde as partes mais mesquinhas do ser humano o levam, e nos mostre quais possibilidades de conexão e felicidade são perdidas por causa delas. A Casa do Dragão não tem feito nada disso - a sua feiúra é pose, está inteiramente na superfície, e não diz nada.

O mais alarmante é que, se continuar sendo recompensada com audiências estonteantes e premiações prestigiadas, esse estilo de narrativa que só serve a si mesma tem tudo para se perpetuar por toda uma franquia cujo potencial humano sempre foi gigantesco. Quem tem mais a perder nessa brincadeira, claro, é o fã de Game of Thrones.

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