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Crítica

Teocracia em Vertigem: Especial de Natal Porta dos Fundos 2020

Porta dos Fundos produz um inteligente Especial sobre a morte de Jesus e não sobre seu nascimento

16.12.2020, às 10H18.
Atualizada em 16.12.2020, ÀS 10H37

 

No último dia 10 o canal do Porta dos Fundos no YouTube liberou seu novo especial de Natal, Teocracia em Vertigem, que, apesar dos mais de 1 milhão de acessos até agora, parece um lançamento discreto na comparação com o turbilhão que foi A Primeira Tentação de Cristo, no ano passado, pela Netflix. Os efeitos das provocações religiosas do especial chegaram a extremos impensáveis, como um atentado a bomba na sede do grupo. A Netflix permaneceu em defesa da obra, mas neste ano a parceria foi encerrada, no que também pode ser considerado uma das consequências das reações provocadas pelo Porta.

Teocracia em Vertigem é o resultado natural de um país ainda mais polarizado depois dos acontecimentos de 2020. Nos anos anteriores, a narrativa tresloucada dos especiais de Natal tinha um enfoque maior em parodiar elementos comuns ao Natal e ao nascimento de Jesus. Isso ainda está em pauta este ano, mas com uma priorização política que acabou engolindo os detalhes natalinos que, inclusive, encaixavam melhor as obras dentro da proposta da produção. De certa forma, se o novo especial tivesse entrado no catálogo da Netflix provocaria um ruído, diante do investimento brutal da empresa em títulos natalinos de perfil mais tradicionalista.

A ideia do “documentário” que discute a prisão e morte de Jesus é extremamente inteligente, mas se encaixaria melhor numa celebração de Páscoa. Isso porque o argumento pautado em copiar o estilo da cineasta Petra Costa (indicada ao Oscar pelo documentário Democracia em Vertigem) se encaixa na discussão sobre o que teria condenado Jesus à morte. Historicamente, a ideia de sua prisão e condenação foi descrita como uma manobra dos saduceus para influenciar o povo a pedir a crucificação de Cristo. Partindo dessa premissa – verdadeira ou não – fazia todo sentido que o documentário de Petra (sobre os movimentos políticos e de mídia que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff) servisse como objeto de paródia. O tempo todo o que é discutido é a morte de Jesus e não o seu nascimento.

Especial em Vertigem

Apesar da ótima ideia apresentada pelo especial, além do afastamento do tema natalino, o trabalho dos roteiristas esbarra num dilema: como dar conta de abordar todas as piadas em potencial propostas pelo decorrer do ano? Pode ter havido uma curadoria de tiradas, mas a impressão que o especial passa ao final de seus 50 minutos é de que havia uma ansiedade para conseguir falar de tudo. O resultado é marcado por uma falta de fluidez; a dinâmica de depoimentos, que era promissora nos primeiros 10 minutos, acabou ficando velha muito rápido, sobretudo porque não se intercala com quebras de estrutura suficientes. O ritmo, enfim, fica totalmente desnivelado.

Um exemplo disso é o ótimo momento em que Maria (Evelyn Castro) é levada contra vontade para um desses programas policiais sensacionalistas. Além do texto afiado, a atuação de Evelyn como Maria é a mais forte do grupo. Basta ver o monólogo de Evelyn nos primeiros minutos sobre a infância de Jesus para perceber o quanto uma pitada de empenho na interpretação faz diferença. O mesmo vale para o ótimo Pedro, vivido por Leandro Ramos.

Há outros bons momentos, como a votação para libertar Barrabás ao invés de Jesus, que remete aos absurdos da votação do impeachment de Dilma, e o clipe final, com Fábio Porchat como Jesus Cristo cantando um rap mordaz. O clipe é longo demais, mas com uma crítica certeira: "Eu já voltei como preto, mulher e travesti. Nas três vezes vocês me mataram, por isso eu desisti. Se for pra voltar de novo, vai ser pra destruir". Mesmo que haja muita pressa para tocar em todos os assuntos políticos vigentes, de tudo se tira alguma tirada sagaz e são incontáveis as vezes em que se fazem paralelos entre governos, das maneiras mais óbvias até as mais veladas.

O especial foi filmado entre agosto e setembro, e seu roteiro passou pelo crivo das mulheres do elenco e também de religiosos. É o Porta dos Fundos preocupado não só com respeito como também com a própria segurança. Teocracia em Vertigem não vai fazer o barulho que A Primeira Tentação de Cristo fez, mas é o resultado de um grupo que se debruça sobre a própria história e sobre como pode afetar espectadores com suas provocações. O mais impressionante é que ainda que o especial desse ano diga barbaridades tão grandes quanto as do ano passado, elas não serão problematizadas. Dessa vez Jesus não é gay. Ele é branco, loiro, de olhos azuis, assexuado. Sendo assim, a piada está permitida.

Nota do Crítico
Bom