Tron: O Legado/Divulgação

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Como o cinema foi fundamental na criação e carreira do Daft Punk

Inspirados por filmes e animes, músicos franceses também deixaram sua marca no entretenimento

22.02.2021, às 17H03.

Após 28 anos de carreira, o Daft Punk anunciou sua separação nesta segunda (22). A dupla é conhecida como uma das mais originais e influentes da French House, movimento da música eletrônica francesa, mas também deixou sua marca em todo o entretenimento. Mesmo antes de vestirem seus icônicos capacetes, Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter sempre foram grandes fãs de cinema e quadrinhos, algo que ajudou a moldar a personalidade e estética de suas obras.

Não é exagero dizer que o Daft Punk não existiria se não fosse pelo cinema. Homem-Christo e Bangalter se conheceram aos 12 anos de idade numa escola de Paris, mas a boa amizade entre eles surgiu mesmo entre pipoca e telonas. A dupla já falou em diversas entrevistas das suas várias idas à matinê para assistir O Fantasma do Paraíso, ópera-rock de Brian de Palma (Carrie, a Estranha) que foi um fracasso de bilheteria em 1974, mas que se tornou um clássico cult pela excelente trilha sonora. Os músicos contam ter visto mais de 20 vezes o longa no cinema, com Bangalter o descrevendo como “nosso filme favorito, a base para muito do que somos artisticamente”.

Esse apego pelo audiovisual deu as caras várias vezes no trabalho da dupla. Depois de ganhar prestígio no circuito underground europeu com mixtapes de peso, o Daft Punk se reuniu com diversos diretores na criação de videoclipes para o seu primeiro álbum, Homework, de 1997. A lista inclui nomes como Spike Jonze (Her) e Michel Gondry (Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças). Com esse primeiro contato com os bastidores do cinema, veio a ideia de criar um filme. Grandes fãs de animes como Akira, em 2003 os dois se reuniram com o mangaka Leiji Matsumoto, de Capitão Harlock: Pirata do Espaço, para o longa animado Interstella 5555. Sem diálogos, o anime é inteiramente contado por meio das faixas do álbum Discovery, de 2001, contou com produção da Toei Animation (Cavaleiros do Zodíaco, One Piece) e foi comandado por Kazuhisa Takenouchi, diretor de Dragon Ball.

Já nos anos 2000, o Daft Punk havia conquistado certa popularidade no mundo todo pelo visual inusitado, videoclipes inventivos e pela aclamada turnê mundial Alive 2007. No mesmo ano, fez uma parceria com Kanye West num remix de “Harder, Better, Faster, Stronger”, garantido presença no mainstream. Todo esse sucesso permitiu que os dois dedicassem mais tempo a projetos audiovisuais. Logo em 2006, prepararam uma homenagem ao cinema com Electroma. Dirigido por Homem-Christo e Bangalter, o filme acompanha a jornada de dois robôs que tentam virar humanos, e é repleto de referências a THX 1138, de George Lucas; Westworld, de Michael Crichton; e, claro, O Fantasma do Paraíso. Assim como o filme de Brian de Palma que tanto amam, Electroma se tornou um queridinho de sessões da madrugada, com recepção mista entre a crítica. Na época, o Omelete considerou como “uma odisséia visual e musical”, com a nota máxima de 5 ovos.

Em 2009, fizeram sua estreia nos videogames com DJ Hero, da mesma publisher de Guitar Hero. Trocando o controle de guitarra por uma pickup de plástico, o game reuniu diversos nomes da música eletrônica e do hip-hop. O Daft Punk não só integrou o elenco de personagens jogáveis, como também disponibilizou várias de suas músicas para serem remixadas.

Mas o verdadeiro marco da dupla no entretenimento veio no ano seguinte. Em 2010, a Disney contratou o diretor Joseph Kosinski (Top Gun: Maverick) para resgatar Tron: Uma Odisseia Eletrônica, cult de 1982 estrelado por Jeff Bridges (O Grande Lebowski). O projeto traria de volta os personagens e universo do original, mas com foco em criar um impressionante mundo retrofuturista em 3D. O Daft Punk então foi recrutado para imaginar a trilha sonora desse universo, e o resultado é até hoje um dos trabalhos mais poderosos de sua carreira.

Para a música de Tron: O Legado (2010), Homem-Christo e Bangalter olharam para o impressionante trabalho de Wendy Carlos no original. A compositora não só fez a trilha de Uma Odisseia Eletrônica e O Iluminado, como também ficou conhecida como visionária por seu uso criativo de sintetizadores. O Legado presta homenagem a isso com intenso uso dos instrumentos digitais, seja em melodias atmosféricas para representar o frio mundo de circuitos eletrônicos, ou nas agitadas batidas dançantes que acompanham as cenas de ação. Ao olhar para o passado, o Daft Punk também atingiu o movimento do synthwave que crescia na internet, de nostálgicos pelos neons exagerados e sons dos filmes oitentistas. Com a popularidade do filme aumentando com o passar do tempo, a trilha sonora só cresce em importância, acompanhada também por Tron: Legacy Reconfigured, álbum de remixes das faixas de Wendy Carlos por diversos artistas da música eletrônica, supervisionado pela dupla francesa.

Não é à toa que, alguns meses antes de anunciar o fim da dupla, o Daft Punk garantiu que ambos os trabalhos para Tron fossem disponibilizados nas plataformas digitais. O carinho da dupla pelo cinema merece ser reconhecido tanto quanto suas contribuições para a música eletrônica. Inclusive, o último projeto anunciado pelos dois, em abril de 2020, foi a trilha sonora de Occhiali Neri, novo filme do mestre italiano do terror Dario Argento (Suspiria, Prelúdio para Matar). Resta saber se isso continua nos planos, mas, ao olhar para as várias homenagens ao longo de suas carreiras, não seria surpreendente se Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter se dedicassem a compor para filmes e séries nessa nova fase, seguindo o exemplo de Trent Reznor, do Nine Inch Nails, que se reencontrou nas trilhas sonoras de A Rede Social, Watchmen, Soul e mais.