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Mangás e Animes

Artigo

Como mangás e animes me ajudaram a me entender como negro

Me enxergar nos traços japoneses me tornou um otaku mais confiante

20.11.2021, às 12H00.

Como disse uma vez a escritora e antropóloga brasileira Lélia Gonzales, “a gente não nasce negro, a gente se torna negro”. Tornar-se negro é uma difícil e profunda jornada de autorreconhecimento. As referências que temos durante nossa vida são determinantes para sabermos o quão difícil será trilhar esse caminho. A cultura pop tem um papel fundamental nesse sentido, pois é dela que as crianças tiram suas principais referências para descobrirem quem são. Felizmente para mim, minha infância se passou nos anos 2000, quando me ver nas telas estava ficando mais comum. Isso deixou o processo levemente mais fácil, e vou dividir um pouco dessa história com você nesse Dia da Consciência Negra.

Apesar da enorme importância de Super Choque, Spike (X-Men) e o Lanterna Verde, de Liga da Justiça: Sem Limites, foi nos animes que eu me senti mais acolhido. Pode parecer estranho, já que é mais muito mais comum encontrarmos um anime sem nenhum personagem negro do que uma animação ocidental sem a mesma representatividade. Porém, acontece que desde muito criança eu assisti a muito mais animes que qualquer outra coisa.

Personagem de Dragon Ball Z (Reprodução)

É difícil cravar, mas o primeiro personagem negro que vi nos animes provavelmente foi Killa, de Dragon Ball Z. Ele era um lutador e apareceu em alguns momentos dos famosos episódios do “Torneio Mundial de Artes Marciais”. Nas lutas que participou, foi facilmente derrotado — e a gente até poderia iniciar uma discussão sobre o lugar do negro nas animações, mas talvez esse seja um artigo para outro momento. Apesar de Dragon Ball ter me dado Killa, a franquia de Akira Toriyama também revelou o personagem Sr. Popo, que se tornou um apelido pejorativo para muitas crianças da minha época por seu visual inumano. Isso não foi culpa de Akira, claro, mas de um sistema que normalizava essa violência nas crianças.

Com o passar dos anos, eu via mais e mais animes e me encontrava naqueles traços e me sentia cada vez mais seguro sobre meu cabelo e minha pele, e também sobre quem eu era. Ver que aqueles personagens tinham vez, um propósito, me fazia acreditar que eu também poderia encontrar o meu caminho. Como a maioria dos otakus, eu cresci muito tímido e introvertido, o que só me fazia mergulhar mais fundo no universo dos animes. Foi aí que eu conheci a obra de Tite Kubo. Bleach é de longe o mangá e anime que eu mais devorei na vida, e o cuidado que Kubo teve em adicionar personagens negros, como Kaname, Yoruichi e até o figurante Zennosuke e seu black power perfeito, durante toda a história me conquistou demais. Mas essa obra é um caso à parte. A genialidade do mangaká não se limita a criar todo o universo dos Shinigamis, mas inclui diversos elementos que permitem a fãs de todo o mundo se sentirem representados. A história conta, além dos japoneses, evidentemente, com latinos, europeus, indígenas, LGBTQIA+, cegos e agora, no mangá de tiragem única, um personagem mudo.

Yoruichi, Zennosuke e Kaname, personagens de Bleach (Reprodução)

Além desses exemplos, nós também poderíamos falar muito sobre Naruto Shippuden, no qual Masashi Kishimoto revelou uma aldeia inteira de personagens negros e muito legais. Quem nunca rimou com o Killer Bee, bakayaro, konoyaro? Assim como Kubo, Kishimoto não apenas incluiu personagens negros em sua obra, mas também os elementos da cultura preta, como RAP, penteados e etc. E, claro, não poderia terminar esse artigo sem citar o lendário Afro Samurai. O mangá seinen de Takashi Okazaki se transformou em anime, games e um ícone sólido que serviu de referência para muitas outras produções que vieram depois — inclusive para as citadas acima.

Afro Samurai (Reprodução)

Eu ainda estou no processo de entender o que significa ser um homem negro e o meu papel em uma comunidade afrodiaspórica global, e os animes, mangás e a cultura pop seguem ao meu lado nessa busca diária. Espero cada dia mais me ver nessas produções e que o universo nerd possa ajudar cada vez mais crianças a entenderem quem são e para onde querem ir como indivíduos, para se tornarem o que precisam ser.