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Justiceiro | Primeiros episódios revelam série mais madura e visceral da Marvel na Netflix

Confira as impressões iniciais da série solo de TV do anti-herói dos quadrinhos

13.11.2017, às 16H30.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H40

A nova incursão da Marvel na Netflix, Justiceiro, é para quem tem estômago forte e capacidade apurada de reflexão crítica. Depois da apresentação de Frank Castle em Demolidor, o homem marcado pelo terror da guerra ganha os holofotes para si em uma trama que mostra a dificuldade de fazer justiça em função do quão passível de ser relativizado esse conceito pode ser. Os quatro primeiros episódios se empenham para, antes da trama principal começar a engrenar de fato, ratificar o tempo todo o quanto o protagonista violento é paradoxalmente uma pessoa fragilizada. Jonh Bernthal dá vida a um homem quebrado por situações que são produto de uma sociedade que precisa ser repensada urgentemente.

Justiceiro, como não poderia deixar de ser em se tratando de uma série sobre um homem cujos traumas são frutos de um conflito bélico que realmente aconteceu e que por muito tempo teve destaque nos noticiários da vida real, assume um forte teor político em determinados momentos. Logo no primeiro episódio há uma cena que mostra um grupo de apoio liderado pelo ex-fuzileiro naval Curtis Hoyle (Jason R. Moore) e expõe o discurso problemático de um homem dizendo que é preciso "fazer algo sobre os babacas liberais politicamente corretos que estão levando os EUA para o buraco querendo tirar nossos direitos e nossas armas" - a história, que não usa didatismo exagerado, coloca essa afirmação em xeque sem dificuldade.

O próprio Bernthal já havia dito que esperava que a série alimentasse um debate sobre políticas para controle de armas nos EUA e Ben Barnes, que interpreta Billy Russo na trama, comentou que "a violência na série é para causar desconforto e mostrar o desgaste dos personagens ao serem violentos; ninguém é louvado por ser violento, especialmente se estiver usando armas" - saiba mais. Essa preocupação de não glamourizar conflitos e agressividade é muito óbvia e importante, mas isso fica claro quando, a todo momento, é fácil sentir empatia pela dor do protagonista, mas beira o impossível tratá-lo como um exemplo. Ao contrário de heróis clássicos, é difícil que alguma criança afirme que gostaria de ser o Justiceiro na mesma proporção que desejaria ser, por exemplo, o Homem-Aranha.

Há uma necessidade que circunda a série o tempo todo que é a de pontuar o quanto tudo ali é fruto de instituições, comportamentos e homens problemáticos. A Marvel já havia obtido êxito em humanizar seus heróis na Netflix com, por exemplo, Demolidor, evitando colocar o protagonista em um pedestal maniqueísta onde ele personificasse o bem. Matt Murdock (Charlie Cox) já apresentava conflitos pelo seu prazer em aplicar com as próprias mãos seu conceito de justiça - não por menos, Castle foi introduzido na série do herói cego. Em Justiceiro, essa discussão atinge sua forma mais robusta: Frank Castle não é exatamente o tipo de salvador que as pessoas querem para proteger sua vizinhança - pelo contrário, é possível que muita gente queira só que alguém tão problemático como ele fique distante. O que, obviamente, não faz dele um vilão, mas, nem de longe, o torna a definição perfeita de um mocinho.

Ainda sobre as outras séries da Marvel na Netflix, parece que Justiceiro reúne um pouco do melhor delas. Em Luke Cage, temos um homem que é vítima de um sistema legal que legitima exclusões sociais - o primeiro inimigo do herói acaba sendo a própria instituição que deveria lhe garantir segurança. Em Justiceiro, como já havia sido visto na série do herói do Harlem, existe uma forte problematização acerca do papel nocivo de um governo repleto de interesses escusos, mas ainda mais explícita, se é que isso parecia possível. Avaliando Jessica Jones, há a narrativa de uma heroína pouco carismática e, principalmente, completamente abalada psicologicamente pelos traumas que fizeram com que ela se tornasse o que é. Frank Castle também está fragilizado pelas coisas perturbadoras que aconteceram em sua vida e isso faz dele um personagem multifacetado e incrivelmente interessante.

As escolhas de elenco funcionam muito bem no geral, mas Jon Bernthal fica com os principais créditos. O ator já havia se revelado uma boa escolha para adaptar o personagem dos quadrinhos, mas, em sua série solo, isso fica ainda mais claro. Há muita interpretação nos longos silêncios de Frank Castle e muito sofrimento implícito nas horas de colocar a violência em prática através de golpes secos e efetivos. O ator carrega o personagem disfuncional por diversas emoções sem precisar muito esforço e sem soar falso ou exagerado. É um ponto muito positivo que, apesar da violência física não ser economizada na trama, os momentos mais dolorosos são os que dizem respeito a cicatrizes psicológicas.

Além de Bernthal, Amber Rose Revah, a agente Dinah Manami, criada especialmente para a série de televisão, faz um bom trabalho na hora de introduzir sua personagem na história e o núcleo que a circunda é bem contruído, indo desde o chefe com potencial para se revelar um sujeito abusivo até o parceiro que garante um breve e quase imperceptível alívio cômico em uma série extremamente pesada. Há também o rosto conhecido Deborah Ann Woll, a Karen Page de Demolidor, engrossando a lista de personagens com histórias traumáticas - as interações entre Karen e Frank funcionam justamente pela disfuncionalidade compartilhada por eles.

Justiceiro apresenta uma narrativa que começa na injustiça e, na tentativa de fazer justiça, cria-se uma bola de neve de outras injustiças - cada personagem tem sua própria noção de certo e errado, de bem e mal e, ao colocar as próprias convicções acima das dos demais, todos acabam se atropelando violentamente. Ainda que, à princípio, Justiceiro soe como a história de um homem buscando vingar a família assassinada, a série só funciona se o espectador estiver disposto a ver além disso - os quatro primeiros episódios já deixam a dica ao colocar o próprio protagonista questionando até que ponto suas ações foram determinantes no seu presente. O mais interessante, no fim das contas, é que os primeiros episódios da série cumprem bem seu objetivo: após apresentar a espinha dorsal que irá sustentar a história por 13 episódios, é difícil pensar em deixar de acompanhar o programa. E não é, nem de longe, a tarefa mais confortável do mundo: Justiceiro não desvia o olhar nem para espirrar sangue e quebrar ossos, nem para mostrar as dores que Frank Castle carrega na alma.

A estreia de Justiceiro acontece na Netflix em 17 de novembro.