Algumas décadas após um certo Jack tornar-se famoso ao estripar prostitutas e outras tantas antes dos serial killers virarem moda, o Dr. Caligari e seu fiel sonâmbulo já espalhavam terror nas telas de cinema.
O ano era 1919 e nos cinemas alemães estreava... Das Kabinett des Dr. Caligari.
Por falar em cores, na década de 90, o filme foi relançado em vídeo (e agora em DVD). Restaurada a partir de uma cópia encontrada em Montevidéu, a obra teve recuperadas suas cores originais: azul, amarelo, verde e castanho. Em outras palavras, um pequeno (e importantíssimo) naco da história do cinema do século XX pôde enfim ser reavaliado com toda a sua intensidade.
Mais do que ousadia estética
Antes, ninguém havia cogitado contar uma história que não através da ação. No Gabinete, cenários e indumentária podem ser considerados os verdadeiros narradores da história. Ao longo da fita, são esses elementos, normalmente secundários, que mais saltam aos olhos revelando não só o que acontece, mas o íntimo das personagens. Cada quadro, na verdade, é uma tela, repleta de exageros e distorções; quase uma história em quadrinhos. Vale dizer que o próprio roteiro inovou ao apresentar uma história dentro de outra.
Naqueles dias, recém-egressa da malfadada Grande Guerra, a Alemanha estava longe de ser otimista. O desencanto ofereceu-se como alvo perfeito para o senso crítico de seus jovens roteiristas, Carl Meyer e Hans Janowitz. Ambos pretendiam que sua história de horror fosse uma metáfora para a situação caótica por que passava seu país. Queriam denunciar a onipotência do estado, simbolizado pela figura opressora e totalitária de Caligari. A apatia dos soldados que, sem consciência, obedeciam ordens fez-se representar pelo sonâmbulo Cesare protagonizado por Conrad Veidt. No entanto, com a chegada de Fritz Lang, o lendário diretor de Metrópolis, Dr. Mabuse e vários outros clássicos do cinema alemão, o projeto tomou feições menos ideológicas.
E esse é o filme que chegou a nós.
A gênese da história
Carl Meyer era obcecado pelos abusos que cometeram os psicólogos militares, aos quais fora encaminhado várias vezes durante sua participação na Grande Guerra. Janowitz, por sua vez, trazia, como embrião para o argumento do filme, uma aterradora experiência pessoal.
Na manhã seguinte, os jornais estampavam: "Horrível Crime Sexual em Holstenwall. A jovem Gertrude...Assassinada". Movido pela desconfiança de que Gertrude fosse a jovem que seguira, Janowitz compareceu ao enterro. Suas suspeitas se confirmaram. Pior: em plena cerimônia, reconheceu o burguês com quem cruzara em meio aos arbustos. O furtivo homem também o reconhecera, desaparecendo em seguida. Não havia dúvidas, aquele era o assassino.
Seis semanas depois, estava pronto o argumento original do filme. O nome da película surgiu das paginas de um livro raro chamado Cartas desconhecidas de Stendhal, em que o autor francês afirmava ter, ao voltar da guerra, conhecido um oficial chamado Caligari. A personagem moldada a partir do antigo arquiinimigo de Mayer ganhava, assim, o nome que a consagraria. Holstenwall tornou-se a cidade fictícia onde ocorreriam os crimes. A feira também estava lá, bem como Cesare, inspirado no artista em transe. Da junção destes elementos reais, surgiu uma historia que pretendia expor a loucura da autoridade e seus abusos.
Por outro lado, mesmo com sua vertente política atenuada, O gabinete... teve o mérito antecipar Hitler e sua manipulação das massas. Tal qual Caligari com seu inocente Cesare, o ditador transformou os alemães em sonâmbulos.
Houve várias adaptações de O gabinete... para os quadrinhos, sem falar do sem número de vezes que a obra foi citada em gibis.
Mais recentemente, em 1992, a editora Monster Comics lançou The Cabinet of Doctor Caligari, uma mini-série em três partes assinada por Ian Carney e Michael Hoffman, bem como uma versão futurista intitulada Caligari 2020.
Em 1999, o casal de roteiristas Randy e Jean-Marc Lofficer e o ilustrador Ted Mckeever juntaram elementos de Batman, Super-homem e da Metrópolis de Lang aos do filme de Wiene no fantasioso especial Nosferatu.
Ainda sobre Batman, vale lembrar que, em 1992, o novo visual criado para a personagem Pingüim no filme Batman Returns de Tim Burton - posteriormente adotado no desenho animado - é uma clara homenagem ao Doutor Caligari.
Eu mesmo cheguei a cometer a heresia de adaptar o filme numa HQ de 8 páginas. Com texto de Gian Danton, essa história está na gaveta desde que o projeto da revista Manticore Quadrinhos de terror e ficção científica (leia aqui) foi cancelado. Ela teria sido incluída na terceira edição do gibi que não passou da segunda. Algumas das imagens desta HQ ilustram esta matéria.
O próprio cinema também prestou "homenagem" ao bom doutor com uma pérola do trash: Dr. Caligari, um filme de quinta categoria que, de tão ruim, serve apenas para deixar claro que tudo que esta mídia tinha a dizer sobre o tema, ela o fizera em 1919.
Entre no Gabinete
Recomendo que você faça bom proveito dos extras do DVD. Além dos 69 minutos do filme, o disco ainda oferece a biografia do diretor e dos atores, estudos sobre a estética da película e a psicologia do cinema expressionista, o trailer do filme Genuine também de Wiene e um texto especial em que o diretor Antunes Filho discute o caligarismo na interpretação teatral.
Enfim, as portas
desse seleto gabinete ainda estão abertas... é só entrar.
José Aguiar, além de ilustrador e quadrinhista, nas horas vagas gosta de revirar o baú e desenterrar coisas velhas; principalmente as que tenham relação com os quadrinhos.