Filmes

Entrevista

Festival de Berlim | "Buscamos um registro poético do cotidiano de Tiradentes", diz brasileiro que pode levar o prêmio

Marcelo Gomes falou ao Omelete sobre o longa Joaquim

11.01.2017, às 15H23.
Atualizada em 11.01.2017, ÀS 20H01

Construído como uma coprodução Brasil-Portugal, com base num dos momentos de maior tensão da História Colonial dessas duas pátrias, a Inconfidência mineira, Joaquim pode dar ao diretor pernambucano Marcelo Gomes (de Cinema, Aspirinas e Urubus) o Urso de Ouro: o cineasta vai representar o Brasil na competição oficial do Festival de Berlim. Há três anos, ele e o cineasta mineiro Cao Guimarães passaram por lá com O Homem das Multidões, em seção paralela. Mas agora, ele pode sair de lá com um dos mais cobiçados prêmios da indústria cinematográfica mundial, calcado em algo que evoca as cartilhas do thriller político, só que de época. Na entrevista a seguir, ele explica ao Omelete seu mergulho no passado de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, vivido por Julio Machado

Omelete: De que maneira Joaquim aborda o mito e os fatos em torno de Tiradentes?

Marcelo Gomes: Nos filmes históricos, o que existe é sempre uma direção de arte rebuscada de cores excessivas, um figurino pesado e que às vezes fica na frente do próprio personagem. Além de uma câmera excessivamente clássica. A Minas Gerais do filme terá cores desmaiadas, cobertas de lama das contínuas chuvas que castigavam a região, objetos essenciais e a inexistência do supérfluo. Uma direção de arte desbotada, suja, precária. Um passado sem glamour como era, na verdade, o passado. Tudo que aparece no filme tem uma função dramática, tem história, utilidade, dureza, secura. É uma Minas Gerais com as ruas cheia de aventureiros, vindos de toda a parte, à procura do enriquecimento rápido. Pessoas de ambição desenfreada, cidades de uma urbanização caótica. Queria me aproximar do humano, do Joaquim que nos fizesse entender as mazelas de nosso passado para entender melhor o nosso presente. 

Omelete: E que linguagem você adotou para isso?

Marcelo Gomes: A câmera na mão iria trazer uma proximidade humana e também um passado mais real. Uma câmera que vai em busca de um registro da poética do cotidiano presente na vida de Tiradentes: como moravam, como e onde dormiam, como eram suas relações afetivas, como escovavam os dentes, como tratavam seus pacientes. Como disse anteriormente, queremos decifrar o homem e não o mito sobre o Joaquim antes de ser Tiradentes. O filme é sobre um Joaquim qualquer e sobre um pequeno momento da vida, não uma biopic. É onde pulsa o coração de Joaquim.

Omelete: Você atribuiu o papel principal, o mítico Tiradentes, ao ator Julio Machado, de Velho Chico. Como foi feita a sua escalação de elenco?

Marcelo Gomes: Minas colonial era uma babel de raças e línguas e queríamos reproduzir essa identidade no elenco. Como é habitual em meus filmes, realizei uma extensa pesquisa e fiz diversos testes com atores que, em sua maioria, tinham experiência no teatro. Todo o processo de procura e seleção de atores para teste foi realizado por Maria Clara Escobar, que assina o elenco. Em meio aostestes, cheguei ao Julio Machado, ator que, de cara, surpreendeu por sua entrega e confiança. Fizemos testes com muitos atores, muitos talentos, mas Júlio tinha para além do grande talento: o physique du role perfeito para o Joaquim que eu queria retratar. Ele construiu Tiradentes exatamente como eu tinha pensado, chegando a extrapolar todas as minhas expectativas, presenteando o personagem com tintas sutis. Deu corpo e alma ao Joaquim. Uma dedicação exemplar. De modo geral, era importante para nós não só os talentos, mas que os corpos que representassem os papéis estivessem de fato ali conosco na criação do filme, que tinha algo de documental em seu processo. Buscamos os atores africanos e portugueses no Brasil e em Portugal. Fizemos uma pesquisa, levantando os nomes daqueles que seriam os mais adequados para os papéis que buscávamos. Ao mesmo tempo, alguns papéis iam dialogando e se moldando em função desses testes e encontros. 

Omelete: O que a figura de Tiradentes simboliza paras as artes no Brasil, uma vez que ela gravita em múltiplas obras, desde os poemas de Cecília Meireles, em Romanceiro da Inconfidência, até filmes cults como Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade?  Qual é o desafio de revisitar essa história? 

Marcelo Gomes: Vários historiadores escreveram diversas biografias sobre o Tiradentes e todas elas possuem leituras muito diferentes do herói. Existe uma escassez muito grande de documentos sobre a vida dele. Assim, Tiradentes nos permite diferentes leituras poéticas. Acho que por isso ele é um personagem que instiga tantos artistas. Temos a possibilidade de imaginar sobre a vida do mito. Além do mais, ele é um personagem que morreu de forma muito digna: assumindo para si toda a culpa da insurreição contra a cora portuguesa. O desafio maior é entender o que te atrai nesse personagem. No meu caso, é o fato de como aconteceu essa mudança de paradigma: de soldado da Coroa para um rebelde anticolonialista. Tudo isso acontece na ética da sociedade do século XVIII. Esse era meu interesse. E por isso mesmo decidi fazer um recorte onde tratamos do período em que ele começa a ser militar da Coroa Portuguesa e vive esses dilemas de colonizador e colonizado, opressor e oprimido ao mesmo tempo

Omelete: Mas que situações o conduziram à rebeldia?

Marcelo Gomes: Imagino que o caldo social e cultural ao redor de Joaquim foi fundamental para a tomada de consciência. A condição de vida dos africanos vindos ao Brasil na condição de escravos e os índios nativos destratados pelo Império português, na minha ficção, também foi fundamental para a tomada de consciência.

Omelete: Como é a alegria de estar de volta a Berlim, em concurso, numa das competições mais disputadas do mundo?

Marcelo Gomes: É fantástico. Primeiramente porque a Berlinale é um festival que se interessa por filmes de temática política, e o nosso filme quer refletir sobre as fraturas sociais provocadas pelo processo de colonização de nosso país. Segundo, é fantástico porque teremos uma visibilidade imensa e para nosso filme – com pouca verba de divulgação – isso é fundamental. Berlim é um festival aberto, com a presença crítica do público e, assim, poderemos ter um primeiro contato com uma camada diversa e sentir as primeiras reações. Participar da competição já é o nosso prêmio maior.

Outros concorrentes de longa-metragem da Berlinale serão anunciados até o fim de janeiro. O Brasil concorre ainda ao Urso de Ouro de curta-metragem com o filme Estás Vendo Coisas, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Este documentário de 18 minutos promove uma radiografia da cena musical brega de Recife. Fora isso, vai ter filme nacional também nas mostras paralelas. Na Seção Panorama entraram Vazante, de Daniela Thomas, Pendular, de Júlia Murat, e na Geração serão exibidos As Duas Irenes, de Fabio Meira, A Mulher do Pai, de Cristiane Oliveira. Estima-se que o longa gaúcho Rifle, de Davi Pretto, vá estar na seção Fórum, mas ainda não foi confirmado. 

Laureado no domingo com o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro por Elle, o diretor holandês Paul Verhoeven presidirá o júri da briga pelo Urso de longas. A seleção dos curtas a serem premiados será feita por um time de jurados composto por  Christian Jankowski, professor na Stuttgart State Academy of Art and Design, pela curadora do Metropolitan Museum of Art de Nova York Kimberly Drew e pelo pelo director artístico do SANFIC Santiago International Film Festival, o pesquisador Carlos Núñez