Pssica é o “Cidade de Deus do Pará” – versão 2025
Minissérie de Quico Meirelles e Fernando Meirelles chega à Netflix em 4 capítulos
26 de agosto de 2024. Há praticamente um ano, eu andava com uma perna só (a outra estava imobilizada pós-cirurgia) por um porto em Belém, no Pará. Para ser mais exato, era o Porto Brilhante, atrás da Igreja da Nossa Senhora do Carmo. O calor era digno de Tatooine e seus dois sóis (34ºC) e no caminho até uma barraca com cadeiras de diretor com o logo da O2 Filmes, atrás de sombra, água e abacaxi, pessoas mexiam em armas ao lado de carros. Armas cenográficas. Mais cedo (ou alguns segundos antes, no tempo/espaço de um set de filmagem), aconteceram por ali perseguição de carro, tiroteios e cenas de parkour à lá Jason Bourne.
Estávamos no set de Pssica, minissérie de Quico Meirelles e Fernando Meirelles para a Netflix, que chegou neste dia 20 de agosto à plataforma. Pela movimentação toda, era fácil entender que estávamos falando de uma série de ação. Mas tudo começou com uma ópera, 10 anos antes.
"Eu vim para cá em 2015. Eu não conhecia direito Belém e vim fazer uma ópera, Pescadores de Pérolas, aqui no Teatro da Paz. E fiquei aqui uns 45 dias. E aí, nesse processo, alguém me deu um livro do Edyr Augusto. Eu fiquei muito fascinado com a maneira como ele escreve, né? Muito! Quem não leu, tem que ler esse cara. Eu falei: 'Como é que esse cara não é tão conhecido no Brasil, no mundo inteiro?' E aí, como eu tava aqui ensaiando de manhã e livre à tarde, eu acabei lendo tudo do Edyr Augusto e fiquei encantado com ele, passei para o Quico, o meu filho. Ele leu o Pssica e falou: 'Quero filmar essa história'", resume Fernando Meirelles, diretor de Cidade de Deus (2002) e Dois Papas(2019).
A sinopse oficial fala que a trama é centrada em três personagens cujas vidas se entrelaçam de maneira inesperada nos rios da Amazônia. Janalice (Domithila Catete), uma jovem que foi raptada pelo tráfico humano, Preá (Lucas Galvino), que precisa fazer as pazes com seu destino como chefe de uma gangue de "ratos d'água" (crimonosos que atuam nos rios da região) e Mariangel (Marleyda Soto), que busca vingança pela morte de sua família. Os três tentarão sobreviver à "pssica" (maldição) que acreditam ter sido lançada sobre eles.
Mas os quatro episódios nem sempre foram imaginados assim. "Era uma um longa-metragem que eu ia fazer. Aí, depois, virou uma série e cresceu. E acabou que ele (Fernando), que tava achando o tamanho da coisa e a densidade da história meio grande ou pesada, também se animou e veio junto. E estamos felizes para caramba, adorando conhecer esse mundo tão lindo e fantástico que é aqui. Estamos apaixonados por esse lugar", complementa Quico.
Embora estivesse totalmente enfeitiçado pelos livros de Edyr, Fernando tinha receio de como mostrar toda a violência. Com pouco mais de 100 páginas, Pssica é uma obra de ação sem fim e muito gráfica em suas descrições. "A literatura dele é genial mas é muito dura. Ele mergulha aqui no centro, nessa área de riachuelo aqui do centro de Belém, e vai pegando submundo, o crime... é sobre o lado negro da alma humana, né? Mas o cara escreve tão bem, é tão fascinante..."
Quem também estava totalmente fisgado por Edyr era Quico. Tão empolgado quanto curioso em como transformar aquilo em algo audiovisual, ele comenta: "acho que na segunda página eu já falei: 'Caraca, o jeito que esse cara escreve essa história tem uma vertigem que eu preciso assistir a isso. A gente tem que tentar reproduzir isso de algum jeito na tela'". E, realmente, o estilo de Edyr é ágil como uma lancha rasgando os rios amazônicos.
O chefe e o chef
Num set sempre há uma hierarquia, e o diretor-geral da série é o Quico. Ele dirigiu os episódios 1, 2 e 4; deixando o 3º para o pai, Fernando, além de algumas cenas aqui e ali. "O Quico, na verdade, é que propôs essa série,” diz Meirelles pai. “A gente tinha uma resistência por causa da violência, mas ele ficou martelando e acabou saindo. A série é dele. Ele que fez desenvolvimento de roteiro junto com o Bráulio [Mantovani] e é o diretor-geral da série."
Aos 37 anos, Quico já tem muita experiência em set. Ele cresceu acompanhando o pai em filmagens de cinema e publicidade, aprendendo a lidar com a pressão e as pessoas. E agora pode tê-lo ao seu lado. "Acho que tem uma uma grande vantagem de filmar com ele porque a gente se conhece muito bem. É claro que não é todo pai e filho que tem uma relação ou próxima ou harmônica, mas a gente tem. A gente é muito amigo,” relatou Quico. “Então, acho que foi a coisa mais feliz possível poder dividir com ele também. Às vezes, a gente divide unidades, eu faço uma coisa no episódio dele, ele faz outra para mim [...] sempre com liberdade para quem tá fazendo a cena poder brincar, mas dentro do pensamento geral de quem tá fazendo o episódio", relata.
No segundo set que visitamos, Quico dirigia uma cena em um boteco. Fernando não estava trabalhando, mas conta que pegou um três tabela, uma câmera, e ficou ali brincando, achando ângulos diferentes de mostrar a cena que o filho dirigia. "Eu comecei trabalhar como operador de câmera do Varela. Eu fazia vídeo independente. Eu era câmera e montador. Então, tá sendo o maior prazer eu voltar a ser um operador de câmera a serviço de um diretor. Ainda mais que o diretor é o Quico, meu filho. Evidentemente, a gente se ama e trabalha bem. A gente é muito amigo. Mas nossa relação é que ele é o chefe e eu obedeço ordens. E à noite, em casa, ele cozinha. E bem pra caramba. É cada jantar! A gente chega do set e ele vai fazer. Não tem ovo frito. É curry não sei do quê... Ainda me dou bem nessa. Eu só lavo a louça e pronto", delicia-se o pai coruja.
As mulheres e as cores
Entre os três protagonistas da série, temos duas mulheres. Uma delas, menor de idade e vítima de um compartilhamento de vídeo íntimo, acaba sofrendo uma sequência de outras violências, como expulsão de casa, estupro, sequestro e prostituição infantil. O livro foi escrito por um homem, a adaptação tem dois homens na direção, assim como o roteirista principal. Mas quem começou tudo foram duas mulheres.
Ao ler o livro, Andrea Barata Ribeiro levou para Bel Berlinck a ideia de fazer um “Cidade de Deus do Pará” - por isso até a presença dos indicados ao Oscar Fernando Meirelles (Melhor Direção) e Bráulio Mantovani (Melhor roteiro). Conscientes das mudanças necessárias para aumentar o número de mulheres no audiovisual, e do quão essencial o ponto de vista feminino é para Pssica, juntam-se ao time outros talentos, como a roteirista Stephanie Degreas, que virou a principal consultora para qualquer dúvida ou melhoria que o script precisava, a fotógrafa Janice D'Avila, as coordenadoras de assistência de direção Sofia Beer e Kity Féo, as montadoras Helena Maura, Taina Diniz e tantas outras profissionais.
"Eu assisti o Manas, por exemplo, e é um filme muito feminino, né? Aqui, temos hoje uma fotógrafa, as montadoras, a gente tem um montador, que a gente ama, que é o Fernando Stuntz, e outras três montadoras justamente para na montagem ter essa [visão mais feminina]. Vamos ver", relata Fernando.
Apesar do tema pesado, o calor e as cores da cidade ajudam a afastar a escuridão. "A série é pop, a série é colorida. As nossas histórias são violentas e tem muita dor para os personagens, mas é colorida. Muitas vezes, no cinema, a gente tenta fugir da cor quando a gente tá falando de dor, de tristeza ou melancolia. Aqui, a cor é a dor também. O Pará é assim. Você anda nos rios, as casinhas são de madeira e a primeira coisa que as pessoas fazem quando a tinta começa a ficar ruim, é comprar tinta nova e pintar. Está nas casas, nos figurinos cheios de rosa e verde-limão, tá na direção de arte, tá na correção de cor. A história é vibrante. A voltagem visual também tá lá em cima, como tá nas aparelhagens, como tá na no dia-a-dia aqui em Belém", conta Quico.
Ação!
Voltando ao porto, vale a pena dar um SPOILER e relatar a cena que vimos sendo filmada. Janalice escapa de um barco de passageiros e sai correndo pelo porto. Escondido atrás de umas caixas está o haitiano, que diz a ela: "sua sorte é que você é muito bonita", colocando-a no ombro e jogando a menina em um barco.
Quando estão saindo, Preá sai do barco mandando parar. Haitiano usa Janalice como escudo humano, se protege e atira em Preá, que cai. Enquanto o barco sai, a experiente guerrilheira latina (Mariângela) desce do barco segurando um fuzil em suas mãos, aponta a arma para a cabeça de Preá e o chama de assassino.
Um pouco de contexto: foram as pessoas do bando de Preá que mataram o marido e filho de Mariangela. Ele diz que não foi ele, e pede para que ela atire pois ele não tem mais nada. A mulher que ele ama acabou de ser sequestrada e levada para Caiena, onde vai virar puta. Ela se comove e o deixa.
Corta! Bate a claquete que encerra a cena. Como essa ação vai acabar, só vendo Pssica, na Netflix.
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