A abertura de Gostinho de Amor é uma das coisas mais adoráveis a aparecer na televisão nos últimos tempos. Emprestando um pouco da identidade visual de jogos como The Sims e Overcooked, a sequência animada vai nos conduzindo pela história de sucesso de um restaurantezinho minúsculo, enquanto os personagens que trabalham por lá vão superando desafios, trabalhando incansavelmente e, é claro, lançando olhares apaixonados um para os outros. É uma encarnação precisa do apelo que o k-drama da Netflix poderia encarnar, a partir de sua premissa: o herdeiro de uma multinacional envolvida no setor alimentício mira na chef talentosa (e teimosa) de um restaurante de bairro para recuperar sua carreira após um tropeço significativo. Com ela, ele tenta redescobrir o amor pela profissão - e, quem sabe, um outro tipo de amor também.
É uma proposta narrativa carismática, impossível negar. O primeiro episódio do k-drama foca muito no ponto de vista de Han Beom-woo (Kang Ha-neul), o tal herdeiro caído, e o roteiro de Jung Soo-yoon (Secret Relationship) tira um prazer óbvio do processo de construir e desconstruir sua arrogância. A primeira meia hora, portanto, é consumida com o executivo encarando cada percalço em seu caminho com a determinação - e a consideração - de um rolo compressor capitalista. Ele dobra regulações governamentais, chantageia pequenos empresários, dá bronca em uma chef por um passo em falso de relações públicas, e usa o seu cartão de visitas envernizado como símbolo de uma fortuna que, na sua cabeça, lhe dá o direito de agir como se fosse dono de cada negócio com o qual esbarra.
Mas é claro que essa pose é recente, aprendida no mundo estrangulado do corporativismo. A segunda metade do capítulo, intitulado “Um Sabor de Familiaridade” no Brasil, vai podando a primazia do protagonista com bastante ousadia, seja pela atitude inflexível (e nada impressionada) com a qual a jovem chef Mo Yeon-joo (Go Min-si) o trata, ou pelas associações que o diretor Park Dan-hee (Blue Birthday) vai desenhando. Quando o executivo experimenta pela primeira vez o kimchi da cozinheira, por exemplo, a série nos joga para um flashback da avó do rapaz lhe apresentando o prato - e uma cena na mesa de jantar da família poderosa da qual ele faz parte ainda postula que a paixão por comida um dia foi parte daquela dinâmica hoje cheia de pressões.
Sobra pouco espaço, como dá para perceber, para a protagonista feminina da história. A chef Mo tem uma única cena desvinculada do seu par romântico nesse primeiro episódio, que serve para desenhar o conflito financeiro que a colocará em sociedade com o seu rival. É uma escolha que definitivamente pode ser remediada no seguimento da série, mas não deixa de ser um tempo pequeno para conhecê-la nessa introdução à trama. E, por mais que Go Min-si se esforce para temperar a personagem com uma determinação de ferro e certa excentricidade cabeça-dura, numa atuação que preenche bem os ambientes no qual é colocada, este ainda é um romance de um lado só - por enquanto.
Se essa ainda fosse a deficiência mais notável de Gostinho de Amor, no entanto, seria fácil rotulá-la como perfeitamente remediável. Mas há algo mais enraizado na própria concepção da série que incomoda: a dominação de uma linguagem visual tão anestesiada quanto a família de milionários que ela pinta como vilões da história. Se o diretor Park parece atento aos arcos emocionais de seus personagens, ele se mostra muito menos conectado às sensações que poderia levantar a partir das ações e ambientes que definem essa história. A sua Gostinho de Amor é definida por uma fotografia de cores mudas e uma edição excessivamente apressada, que não deixa o espectador imergir nas texturas e ambientes que definem o seu tema: comida, a magia dela, e a dedicação que ela inspira em tanta gente.
Se a série não nos mostra por que essa paixão dedicação é valorosa, nem de onde ela vem, o que garante que vamos embarcar nela? Fazer audiovisual sobre comida sempre é um desafio (como transportar o prazer de uma refeição para um meio que não conta com cheiro, nem gosto?), mas normalmente os cineastas que se propõem esse desafio se aplicam de alguma forma a ele. Park, ao que parece, começa sua série já resignado a fracassar, evitando deliberadamente qualquer linguagem evocativa. O resultado é uma história sobre cozinha curiosamente estéril, que canta os prazeres da culinária sem se entregar a eles. E, sinceramente, qual é a graça disso?
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