Séries e TV

Artigo

De Corpo e Alma: A história da novela que Daniella Perez fazia quando foi morta

Criada para falar de amor e morte, essa é a novela de Glória Perez que jamais será revista.

Omelete
6 min de leitura
27.07.2022, às 09H51.
Atualizada em 27.07.2022, ÀS 10H40
Arte/Omelete

Na abertura da novela De Corpo e Alma, a voz de Simone embala um conceito visual interessante: a palavra CORPO é soletrada em meio a quadros com elementos da natureza em formas quase metafísicas. Uma luz muito brilhante acompanha as imagens, até que se encontra com um ponto em comum e explode, como se fosse uma forma de dizer que corpo e alma finalmente se fundiram. O logotipo noventista é direto: a palavra “alma” passa por dentro da palavra “corpo”. Sem saber, essa relação intrínseca de físico com espiritual ganharia significados inesperados e terríveis logo ali adiante.

Até o dia 31 de julho de 1992, quem estava no ar era Pedra Sobre Pedra, de Aguinaldo Silva; uma novela solar, tomada de realismo fantástico onde era possível ver personagens comendo antúrios para serem visitados por Fábio Jr. Em 3 de agosto, De Corpo e Alma chegou até o horário e causou certa estranheza, devido ao caráter extremamente dramático de sua trama, onde perdas e sofrimentos encontravam poucos escapes e doses cavalares de realismo. Era uma transição brusca, tensa, que acabou acontecendo por uma circunstância relativamente comum no mercado: a novela seguinte seria Renascer, de Benedito Ruy Barbosa, mas ela atrasou, e De Corpo e Alma entrou em seu lugar.

Como em todas as novelas de Glória Perez, essa também era cercada de temas polêmicos e relevantes para a sociedade. Contudo, seu plot principal girava em torno de duas famílias, os Varelas e os Bianchis. Diogo (Tarcísio Meira) estava infeliz no casamento e apaixonado por Betina (Bruna Lombardi), com quem planejava ficar assim que tivesse coragem de terminar tudo com a esposa. No dia de fugir com Betina ele acaba desistindo, o que deixa a moça tão desnorteada que ela acaba sofrendo um acidente de carro e tem sua morte cerebral decretada. Doadora de órgãos, Betina tem seu coração transplantado para Paloma Bianchi (Cristiana Oliveira); e é assim que tudo começa a andar.

Em 1992 o tópico da doação de órgãos ainda era delicado. A ideia de Glória Perez foi lançar a seguinte questão: se sempre usamos o coração como centralizador dos nossos sentimentos - ainda que isso seja uma licença lúdica – será que tudo que uma pessoa é pode ser transplantado junto com ele? Diogo, o protagonista de Tarcísio Meira, acaba indo atrás de quem ficou com o coração de sua amada e Paloma passa a novela inteira vivendo o conflito de não saber se ainda teria o amor dele mesmo que não estivesse com o coração de Betina.

Em torno desse enredo, ainda tínhamos a história da troca de bebês na maternidade (que fez com que o filho preto fosse criado pelos ricos e o branco pelos pobres); tínhamos o Clube das Mulheres em que vários homens do elenco performavam; tínhamos um gótico e tínhamos os Bianchi tentando se reerguer através do negócio do transporte público “pirata”. Esse foi justamente o plot que abriu uma porta por onde passou aquele que nunca deveria ter tido brechas.

No capítulo 2 da novela, o casamento de Paloma não acontece, vira um desastre. Ela sai desnorteada e é amparada pela irmã, Yasmim. As duas estão numa estrada escura, deserta, no meio da noite, quando um desses ônibus piratas se aproximam. Yasmin vai para o acostamento e faz sinal desesperadamente para o ônibus parar. O ônibus pára e o motorista, muito nervoso, desce e diz as seguintes palavras: “Menina, que susto, achei que você fosse um fantasma”. Yasmin era vivida pela atriz Daniella Perez. O motorista se chamava Bira e o nome de seu intérprete era Guilherme de Pádua.

Corpo

De Corpo e Alma foi uma novela com uma audiência respeitável, mas minhas lembranças dela não são as melhores. A novela era excessivamente densa, séria, com um time de protagonistas que estava sempre vendo o copo meio vazio. Tarcísio e Cristiana não pareciam ter muita química e Betty Faria (que vivia a esposa dele) era o tipo de mulher pelo qual era impossível torcer, tamanha sua submissão. Não era à toa que seu tema era “Atrás da Porta”, na voz de Elis Regina.

Contudo, a novela tomou conta do país. Sua trilha sonora internacional tocava em todos os cantos da cidade, onde "Rhythm Is A Dancer", do Snap, virava fundo musical para homens brincarem de strippers em churrascos e festas da firma. Elton John, Red Hot Chilli Peppers, Simply Red, Richard Marx e Lucio Dalla eram só alguns dos nomes daquela época em que trilhas de novela eram importantes para suas tramas (mesmo que nem sempre do jeito certo). “Wishing on a Star”, do grupo Cover Girls, nem tinha uma versão inteira no formato de vinil, mas virou um fenômeno.

Na capa desse disco internacional, Eri Johnson aparecia como o gótico Reginaldo, que impressionava pelo visual sombrio, mas que nutria por Yasmim uma paixão platônica. Na fronteira entre reverência e esquisitice, ele a adorava numa espécie de altar, com fotos e coisas que ele recolhia nos breves contatos com ela. Um dos cenários comuns dessas cenas era o cemitério. Reginaldo adorava Yasmin por uma ótica intocável, como se ela fosse uma entidade e não uma pessoa. Aquele “fã”, admirando uma foto, com um olhar triste de quem nunca vai refazer a história, era um bizarro prenúncio do que estava por vir.

Alma

Na noite de 28 de dezembro daquele 92, o público estava em casa assistindo ao capítulo 127 da novela, onde Yasmin e Bira ainda estavam juntos, vivendo o conturbado e passional relacionamento que tinha sido construído apenas para despistá-la de seu verdadeiro par, que era vivido por Fábio Assunção. Naquela tarde, Daniella e Guilherme gravaram a última cena juntos, em que seus personagens terminavam o namoro, e que provavelmente só iria para o ar em meados de janeiro de 93. Guilherme, contudo, achou que não podia mais correr o risco de que a autora da novela soubesse que sua filha vinha sendo pressionada para ajudá-lo a crescer na trama. Por volta das 21:30 daquele dia, enquanto a novela era exibida, Daniella foi assassinada por ele.

Do capítulo 128 até o 185, quando foi encerrada, aquela produção vista como uma peça melodramática acima do tom, se tornou um desfile de coincidências funestas e uma evidência de que o trauma era grande demais para ser superado tão imediatamente. O elenco sofria para gravar, o público sofria ao assistir e as ausências de Daniella e sua personagem Yasmin faziam com que cada capítulo fosse uma nova experiência de tristeza e melancolia. A novela acabou em março de 1993, totalmente desfigurada e desprometida para reexibições. Ela sempre será, contudo, o registro final de uma atriz em ascensão, de uma personalidade adorada e de uma personagem que exigia ser inesquecível. E foi. Na letra da canção que embalava a vida fictícia de Yasmin, um lamento emblemático: “Eu nunca pensei que um dia você estaria tão longe de mim”. Não se pode negar o quanto o universo debochou de todos nós: a primeira fala de Daniella Perez na novela De Corpo e Alma, no capítulo 1, foi... “que saudade”.

Está definido...

 ... que o documentário Pacto Brutal apresentou dois episódios que fizeram jus à importância dessa história e à memória de Daniella. Entrevistei os diretores Tatiana Issa e Guto Barra antes da estreia e vocês podem conferir a íntegra do nosso papo logo abaixo.

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.