Viva a música sem limites com Deezer!

Icone Conheça Chippu
Icone Fechar
Séries e TV
Crítica

His Dark Materials consegue (por pouco) preservar o final brilhante dos livros

Desfecho ainda emociona e provoca, mas “ajustes” para a TV nem sempre caem bem

Omelete
5 min de leitura
13.01.2023, às 16H39.
Atualizada em 28.02.2024, ÀS 00H46
Cena da 3ª temporada de His Dark Materials: Fronteiras do Universo (Reprodução)

Créditos da imagem: Cena da 3ª temporada de His Dark Materials: Fronteiras do Universo (Reprodução)

Jack Thorne é, sem dúvida, um homem de boas intenções. O roteirista britânico, que foi alçado à fama após assinar a peça Harry Potter e a Criança Amaldiçoada, hoje renunciada até pelos fãs mais ardorosos da franquia (mas, mesmo assim, um sucesso enorme de bilheteria), mostrou com seus projetos seguintes que a continuação de Potter não representava a amplitude do seu trabalho. Extraordinário, The Aeronauts, O Jardim Secreto e Enola Holmes o posicionaram como um dos adaptadores literários favoritos de Hollywood, enquanto trabalhos na TV inglesa, como as ótimas minisséries National Treasure, The Virtues e The Accident, recuperaram o prestígio de suas histórias originais.

E então temos His Dark Materials: Fronteiras do Universo, a coprodução BBC/HBO que estreou, em 2019, com a responsabilidade de trazer para uma nova era de televisão a saga fantástica de Philip Pullman, uma das mais amadas e premiadas da história - que, diga-se, já havia passado por adaptação cinematográfica profundamente equivocada. Como showrunner, o trabalho de Thorne parecia ser relativamente simples: escalar bem a produção, realizar os conceitos fantasiosos de Pullman na tela de forma convincente, e… bom, narrativamente, era só condensar alguns eventos e ficar fora do caminho.

Omelete Recomenda

O filme de 2006 fracassou por suprimir o subtexto decididamente anti-religião da história de Pullman, por fabricar um clímax falso que esvaziava o impacto do final de A Bússola de Ouro em virtude de um gancho mais claro para a continuação, por entupir o elenco de estrelas que não tinham espaço hábil ou direção boa o bastante para compreender seus personagens. Pecados capitais que podiam ser, todos, traçados para a megalomania hollywoodiana, para a gana de retorcer uma obra de complexidade e subversividade corajosa para que ela se encaixasse em uma fórmula que a sufocava.

Nas três temporadas que usou para adaptar His Dark Materials, Thorne conseguiu evitar essas armadilhas - mas não outras, que se escondiam em seu próprio ego e sua própria curiosidade. Isso fica especialmente claro no terceiro e último ano, que cobre os eventos do robusto (na edição em português, quase 600 páginas) A Luneta Âmbar, mas dedica muito mais tempo de tela à vida interna de Lorde Asriel (James McAvoy) e Marisa Coulter (Ruth Wilson) do que Pullman jamais dedicou páginas.

De certa forma, nos livros, os pais de Lyra (Dafne Keen) permanecem até o fim envolvidos em mistério. Não existe um flashback, um momento de honestidade emocional melodramática que revele suas motivações, racionalizações e autonegações adultas para o leitor. Como a própria Lyra, somos deixados no escuro sobre a materialidade de um amor de pai e mãe que leva Asriel e Coulter às últimas consequências, mas que não os impediu de deixar a filha sozinha para buscar a glória, o poder, a sempre elusiva vitória final sobre um mundo que os negava.

Pullman parece querer nos dizer que, quando se trata das outras pessoas, certas lacunas sempre ficarão incompletas, certas histórias nunca poderemos compreender. Thorne, por outro lado, se agarra à onipotência de sua posição como narrador desta história para mergulhar nos pormenores desses pais complicados de Lyra, cujos atos egoístas ou altruístas são capazes de definir o destino do mundo. É um espaço que se abre para trabalhos poderosos de McAvoy e Wilson, claro, mas todo um subtexto que se fecha na história, e na identificação do espectador com a protagonista.

Tecnicamente, enquanto isso, as limitações televisivas de His Dark Materials ficam mais claras do que nunca nesta temporada final. O desfecho concebido por Pullman, afinal, é - mais do que só “épico” - caleidoscópico em sua inventividade, misturando espécies, organizações e universos fantasiosos, nunca descritos com a modéstia pretensamente realista de outros medalhões do gênero. A Luneta Âmbar é encantador em parte porque representa a imaginação do seu autor livre de amarras, mas His Dark Materials não têm os milhões intermináveis dos orçamentos de A Casa do Dragão ou Os Anéis de Poder.

A solução encontrada pelo time de diretores, comandado nesta temporada por Amit Gupta, foi manejar de forma até elegante, mas bastante óbvia, os seus recursos. A série “diminui” os cenários extravagantes do livro, trocando os mundos estranhos concebidos por Pullman por locações facilmente encontradas no interior do Reino Unido e evitando takes que obriguem a revelar a escala do espaço onde se encontram os personagens (ou a estrada cheia de carros que passa logo ao fundo do bosque onde foram filmar). Assim, sobra dinheiro para a renderização impecável das criaturas mais marcantes da trama: o urso polar de armadura Iorek, as harpias da terra dos mortos, anjos feitos de luz, bichos de visual alienígena com pelos coloridos e rostos expressivos.

Até por necessidade (mercadológica e orçamentária), His Dark Materials se conforma muito mais à ideia do realismo fantástico do que deveria, considerando a saturação do estilo e o material de origem. Esse ajuste de escala e chave estética incomoda - ver a história vibrante de Pullman condicionada aos tons cinzas e amarelos de uma Game of Thrones traz à mente aquele velho ditado sobre tentar colocar uma peça quadrada em um buraco redondo. Só o que supera mesmo esse desajuste, e a insistência de Thorne na desmistificação dos personagens, é o poder da narrativa de amadurecimento da saga.

His Dark Materials entende e expressa as verdades dolorosas e belas que escapam, proposital ou inadvertidamente, de outras obras adolescentes de fantasia. Esta temporada final revela uma história que romantiza a transição da inocência para a experiência, fazendo dela a própria causa do triunfo da humanidade, mas também uma história sobre como conhecer e aceitar a morte é deixar um pedaço do seu coração para trás. Se tornar adulto, entendem Pullman e Thorne, é perder algo, e se perder nas complexidades daquele mundo que nunca entendemos - ou nunca deveríamos entender -, o dos nossos pais.

A emoção do desfecho da saga literária, tão cristalina em seu exame da consciência adulta pelos olhos juvenis, tão poderosa em sua condenação da doutrina religiosa em favor de uma liberdade ambígua e dolorosa, mas ainda real… ela sobrevive aqui. O ego de um roteirista e as limitações de um estúdio não foram o bastante para matar His Dark Materials dessa vez.

Nota do Crítico

His Dark Materials: Fronteiras do Universo

Criado por: Jack Thorne
Onde assistir:
Oferecido por

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.