Lá em 2021 (sim, já faz tanto tempo assim!), quando Nove Desconhecidos encerrou a sua primeira temporada, este crítico que vos fala lamentou que a então minissérie tenha acabado justamente no momento em que assumia o fato de ser absolutamente ridícula. Pois olha só como há males que vêm para o bem: numa jogada de puro mercenarismo, o Prime Video decidiu que queria uma segunda temporada de Nove Desconhecidos, muito embora o livro original não tenha uma continuação, a fila de projetos de Nicole Kidman esteja mais lotada do que a Marginal Tietê às seis da tarde, a história de todos os outros personagens tenha sido concluída sem pontas soltas ao fim da primeira leva de episódios, e as filmagens tenham sido adiadas ainda mais por conta das greves de roteiristas e atores de Hollywood no final de 2023.
Ainda assim, quatro anos depois, cá estamos nós com uma Nove Desconhecidos inteiramente nova - em mais sentidos do que só a data de lançamento. Nos bastidores da série, saíram David E. Kelley (Big Little Lies) e John Henry-Butterworth (Ford vs. Ferrari), dupla de showrunners que definiu o tom da primeira temporada com uma tentativa estapafúrdia de aproximação da “TV de prestígio” que Kelley havia alcançado em criações anteriores, e entraram Rachel Shukert (GLOW) e Jaclyn Moore (Cara Gente Branca). A primeira ordem de negócios das duas é garantir ao espectador que essa Nove Desconhecidos sabe muito bem o que queremos dela… e, talvez antes de qualquer coisa, o que queremos dela é um espaço para ver Nicole Kidman mastigar cenários.
Daí que “Zauberwald” (2x01) começa com 10 minutos ininterruptos de foco em Masha, a misteriosa guru de ascendência vagamente leste-europeia que terminou a primeira temporada fugindo do “retiro espiritual” para ricaços que costumava comandar. Nove Desconhecidos faz sua primeira investida na direção do camp ao postular que, apesar de continuar sob investigação federal (por dar drogas a seus hóspedes sem consentimento, entre outras coisinhas triviais), Masha também se tornou uma celebridade no mundo do bem-estar. Francis (Melissa McCarthy), que como todos os personagens do primeiro ano só aparece em fotos e tem o nome mencionado, escreveu um livro sobre suas experiências com Masha, que se tornou um best-seller, e o The New Yorker (é claro!) deu a ela um de seus tratamentos emblemáticos de capa que capturam a imaginação dos americanos mais afluentes e metidos a intelectuais.
Kidman, com o cabelo loiro charmosamente preso para cima em uma alusão inconfundível ao penteado mais famoso de Elizabeth Holmes, dá uma palestra para um público curioso sobre como está se aliando a investidores do Vale do Silício para lançar um dispositivo revolucionário que vai tornar as suas terapias acessíveis ao grande público. É uma paródia panaca e certeira da impunidade torta que se aplica às elites, da celebridade duvidosa que concedemos a golpistas e trapaceiros que alcançam certa posição de notoriedade porque nos vemos transfixados pela sua capacidade de enganar um jogo no qual estamos todos presos. E a presença de Kidman, com o mesmo sotaque flutuante da primeira temporada, a mesma capacidade irrepreensível de virar a chave na direção da sátira ou da exploração dramática genuína, a depender da necessidade da cena, é tão hipnotizante quanto qualquer Anna Delvey por aí.
A piada da celebridade de Masha é só um prelúdio para colocá-la no topo da hierarquia de um novo retiro, é claro, desta vez em uma locação ainda mais remota nos Alpes suíços, onde as autoridades não têm qualquer esperança de encontrá-la. Daí em diante Nove Desconhecidos se preocupa em introduzir um novo grupo de “pacientes”, mais intimamente conectados entre si dos que os últimos, e cujos problemas se manifestam também de maneira bem mais caricata. Exemplo perfeito é Brian (Murray Bartlett), foco do episódio “The Crabapple Clubhouse” (2x02), um ex-apresentador de TV infantil que foi cancelado após um surto de raiva no set do programa, e que ainda conversa com um amigo imaginário para ganhar coragem sempre que precisa enfrentar situações sociais.
Nove Desconhecidos se lambuza despudoradamente no discurso levantado pelo personagem, seja ao admoestar a hóspede Imogene (Annie Murphy) como parte de uma geração definida pelo julgamento que passa aos outros, ou colocar na boca de Bartlett a ideia de que “algumas pessoas falham porque não se importam, e outras porque se importam demais” - mas essa lambança é parte da graça, de certa forma. Em sua nova versão, a série do Prime Video se mostra profundamente disposta a “chutar o pau da barraca”, seja na novelização deliciosa de seus movimentos dramáticos (o diretor Jonathan Levine, mais de uma vez, filma Masha como uma gárgula encapuzada passeando pelos terrenos do seu retiro) ou na bagunça irrestrita que define a humanidade de seus personagens naquela chave expandida do camp.
Em suma: o tempo fez bem, muito bem, a Nove Desconhecidos. Pensar no que ela ainda tem guardado para nós nunca foi tão excitante quanto agora.
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