David Lynch, que morreu hoje (16) aos 78 anos, sempre vai ser lembrado como um grande cineasta, um dos artistas de vanguarda que definiram o século XX dentro do entretenimento americano através de títulos como Veludo Azul, Twin Peaks e Cidade dos Sonhos. Como tantos artistas de sua estirpe, no entanto, Lynch nunca se deixou limitar por apenas uma mídia, apenas um formato - e o seu legado musical, nesse sentido, sempre vai ter um lugarzinho especial no meu coração.
Em 2011, quando Lynch lançou o álbum Crazy Clown Time, eu era um fã de cinema e música impressionável de 17 anos de idade, que achou tremendamente curiosa essa ideia de um cineasta tão emblemático lançando um disco que ele mesmo definia como “blues moderno”, mas que os críticos saudavam como “synthpop de vanguarda”. Difícil saber o que eu esperava quando apertei o play em Crazy Clown Time, mas - como costumava acontecer com Lynch - não foi o que eu recebi.
Tingido por guitarras distorcidas que, sim, remetiam ao blues; e por sintetizadores sonhadores e percussões eletrônicas que, sim, tinham algo de synthpop; o disco conseguia ser ambas as coisas sem ser nenhuma delas - até porque estava muito mais interessado em construir um mundo do que em ser um pedaço de música “classificável”. E Lynch não tinha medo de usar todos os instrumentos disponíveis a ele para completar essa missão - a começar pelo instrumento dentro de sua garganta, é claro.
Se, na abertura “Pinky’s Dream”, o cineasta se mantinha por trás dos sintetizadores enquanto a indefectível Karen O (do Yeah Yeah Yehs) berrava a melodia picotada da canção, não demorava para os vocais de Lynch surgirem na deliciosa “Good Day Today”. Vocais altamente filtrados, é claro, transformados pelo computador em um sibilo agudo de alegria artificial - mas eu conheci poucos artistas que usam filtros vocais tão sabiamente quanto Lynch usava.
Em “Good Day Today”, eles transformaram o cineasta em um robozinho dopado; em “Strange and Unproductive Thinking” (de mais de 7 minutos de duração!) ele virou um rapper de ficção científica monotônico; e, em “I Know” um rockstar esganiçado que está escondendo algum segredo profundamente perturbador. David Lynch pode ter produzido sozinho o Crazy Clown Time, enfim, mas atrás do microfone - e no comando de uma boa ferramenta de mixagem, imagino - ele continua multidões.
Nas 14 faixas do disco, Lynch mantinha o ritmo dessas variações sem nunca perder o controle ou a coerência do universo sonoro que estava construindo, povoando-o ou com baixos retumbantes, ou recortes vocais escandalosos (a faixa título está cheia de gemidinhos suspeitos). Seria fácil, na verdade, dispensar o Crazy Clown Time como um projeto de vaidade definido pelas divagações de um artista do filme que não podia mais fazer filmes - o último de Lynch foi Império dos Sonhos, de 2006. Mas o fato é que queríamos ouvir mais das divagações dele.
Prova disso é o quanto o Caio de 2011 ficou fascinado por aquele disco longo, muitas vezes repetitivo, cheio de versos crípticos que pareciam prever um futuro catastrófico, ao mesmo tempo em que jubilavam com o prazer de “ter um bom dia hoje” e de “fumar a matéria dos sonhos”. Aquele personagem que o Lynch da música representava - mais tarde, ele meio que expandiu a mesma persona para tirinhas de jornal e previsões do tempo no Twitter -, uma combinação entre profeta enigmático, inovador estilístico e vizinho boa praça, virou um amigo, e visitá-lo de quando em quando se tornou um hábito gostoso.
The Big Dream (2013), Polish Night Music (2015), Thought Gang (2018) e Cellophane Mysteries (2024) são, todos, parentes próximos do Crazy Clown Time dentro de suas próprias excentricidades. Inovadores e desconcertantes, é claro, mas nunca remotos ou frios; frequentemente sombrios ou monocromáticos, mas nunca cruéis… e, por isso, sempre sedutores. Como nos filmes, Lynch fazia o tipo de música que talvez você não entendesse inteiramente, até por não se inscrever na sintaxe convencional dos gêneros em que tocava, mas com a qual você sempre queria passar mais tempo.
Isso acontecia porque, por toda a sua mística surrealista, o Lynch que eu conheci e amei era um artista que queria se fazer sentir, se fazer entender - e que tinha uma habilidade incomparável de me fazer sintonizar (com uma câmera ou um microfone) na mesma frequência que ele. Triste pensar que, agora, essa frequência silenciou.