Se você cresceu vendo filmes como eu, o cinema de David Lynch era um choque. Como muitos, meus anos formativos foram recheados do mais comum do cinema norte-americano: animações da Disney, aventuras para todas as idades e, eventualmente, super-heróis.
Em outras palavras, o feijão com arroz de Hollywood. Não me entenda errado, eu gosto de feijão com arroz, mas expandir o paladar é tão importante para cinema quanto para gastronomia, e Lynch era um sabor até então desconhecido. Os filmes (e a série) do diretor, que faleceu aos 78 anos, são tipicamente associados ao mesmo adjetivo: estranhos.
Sem dúvidas foi isso que pensei em meus primeiros contatos com Lynch. Começou com Twin Peaks, mas a coisa ficou genuinamente desafiadora com, digamos, Império dos Sonhos, um devaneio febril de três horas que Lynch uma vez descreveu - com tanta simplicidade quanto precisão - como um filme sobre uma mulher em apuros. Cidade dos Sonhos, O Homem Elefante e meu favorito, Veludo Azul, vieram depois.
Se aventurar no Lynchiano partindo de onde vim é um prazer, mas também um desafio. Descrições sobre o quão incompreensíveis esses filmes são tipicamente se tratam de um exagero, mas há uma camada perceptível do que só posso descrever como uma vibe que os mantém sempre envoltos em mistérios. Anos depois de começar minha jornada com ele, estou longe de poder afirmar que entendi David Lynch. E espero que isso não mude nunca.
Afinal de contas, quem quer perder o fascínio com algo? Os filmes de Lynch podem ser confusos, mas acima disso eles são hipnotizantes, únicos e profundamente honestos. Conhecido por encenar sonhos como ninguém, Lynch é tão capaz de capturar sua natureza efêmera e imprevisível quanto de transmitir as sensações de bondade e perversão responsáveis por dar texturas à imaginação. Sua maior qualidade era identificar isso nos cantos dos subúrbios, nas margens do sonho americano. Pelas florestas de Twin Peaks, nas casas de Veludo Azul, na Hollywood de Cidade e Império dos Sonhos, ele encontrou a escuridão que tanto assusta quanto nos dá o ambiente perfeito para sonhar.
Por isso, sua descrição aparentemente boba de “uma mulher em apuros” para o que muitos consideram seu filme mais desafiador, hoje me parece profundamente verdadeira. David Lynch entende de sentimentos e vê seus filmes como expressões desses. O mais marcante pra mim vem no primeiro episódio de Twin Peaks, uma obra que mudou a televisão muito antes da moda de cineastas fazendo séries que cresceu na tal era da Prestige TV.
Falo da entrada do agente Cooper na história. Até aquela cena, Lynch faz um trabalho tão bom de criar uma sombra palpável que envolve a cidade. Mas da mesma forma como molda as sombras, Lynch sabe fazer o oposto. A primeira aparição dele, enquadrado como um gigante no carro, é um raio partindo desse abismo e iluminando tudo, como um café fresco nos acordando do marasmo. Adicione a trilha sonora do Badalamenti e a atuação esfregada em charme de Kyle MacLachlan, e você imediatamente acredita que esse cara não só vai resolver o caso, mas também quer passar mais tempo com ele, quer que ele seja seu melhor amigo.
David Lynch não é inacessível. Sim, há um desafio quando se entra em sua filmografia, mas há também uma recompensa enorme em descobrir que esses sonhos, mistérios e enigmas apontam para verdades fundamentais e, curiosamente, simples. Assistir David Lynch é entender, por exemplo, que às vezes é mais importante sentir do que entender. Às vezes não precisamos de respostas e explicações. Às vezes basta um bom café. A damn good coffee.