Autorreferente até o fim, She-Hulk fez dos haters combustível
Mais do que o tradicional “não gostei”, rejeição desproporcional denuncia como o próprio fandom da Marvel pode ser tóxico
Créditos da imagem: She-Hulk/Marvel Studios/Reprodução
She-Hulk provou, ao longo dos seus nove episódios, que seu sarcasmo é apenas a camada mais imediata do seu humor autorreferente. A provocação e a acidez envelopada como bobeira, na verdade, revelam uma profunda compreensão de como funciona a tão celebrada fórmula Marvel. Por isso, quando a série brinca comparando o retorno do Wongers (Benedict Wong) à uma espécie de armadura contra o Twitter, por exemplo, ela caçoa dos artifícios da Casa das Ideias na mesma medida que os cumpre. É como se fosse um desrespeito respeitoso ou, dependendo do seu próprio grau de cinismo, uma desculpa para fazer a manutenção dos velhos moldes sob o disfarce de mea culpa.
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Independentemente de qual seja sua interpretação, a autoconsciência da série é inegável, e por isso salta aos olhos a decisão da showrunner Jessica Gao de dar um passo além e rir não só do universo, mas do seu fandom. Porque, como era esperado, She-Hulk foi alvo de uma rejeição desproporcional e, embora a justificativa padrão seja o CGI, não é necessário se aprofundar muito nos comentários para identificar que se trata também de uma fachada — nesse caso, para o incômodo de ter mais uma vez uma mulher assumindo o protagonismo do universo compartilhado. Mas, em vez de tentar agradá-los, Gao e sua equipe incorporaram-nos à sua trama como seguidores de uma vilania cotidiana, expondo como um ambiente que pressupõe acolhimento e escapismo, como é uma comunidade de fãs, pode ser tóxico.
Em tempos em que opinião e fato se confundem e que não ironicamente se analisam gostos como certo e errado, talvez seja importante começar dizendo o óbvio: não há problema algum em não ter curtido She-Hulk. Você não é pior ou melhor por isso. Por qualquer que seja a razão, a série apenas não te tocou, e está tudo bem. Meu ponto aqui é que por trás de alguns comentários hiperbólicos — porque, você sabe, nem todo homem... — existe mais do que uma lamentação sobre quebras de expectativa e o que a produção poderia ter sido. Existe misoginia.
Este é um dos grandes temas de She-Hulk. Afinal, ao tirar a heroína do posto de figura inatingível e fazer dos seus dilemas cotidianos um grande campo de batalha, a Marvel pode focar na sua humanidade e, portanto, também nas particularidades da experiência feminina. Por isso, antes mesmo de ter poderes, ela já convivia com colegas de profissão questionando sua aptidão e tratando suas perguntas e discordâncias como descontrole emocional. Tornar-se gigantona e superforte — uma imagem que por si só pode causar estranheza por não remeter ao estereótipo de feminilidade, nem à doçura que socialmente se espera de uma mulher —, então, só enfatizaram algumas das distorções que ela conhecia bem. Até porque, diante da memória dos impulsos raivosos do primo, o “Hulk original” (Mark Ruffalo), qualquer demonstração de emoção um pouco mais intensa poderia — como foi — ser usada contra ela.
A partir do momento em que ela fica famosa, é impossível ignorar que Jen está sob escrutínio público e, portanto, que sua vida é analisada na minúcia nas redes sociais, com elogios, críticas e, claro, xingamentos. E, considerando que esta é uma produção metalinguística, era uma oportunidade muito propícia para rir dos comentários que, antes da estreia, Gao saberia que receberia. Afinal, depois de Capitã Marvel, WandaVision, Viúva Negra e Ms. Marvel — para ficar só nos títulos da Marvel —, era óbvio que alguns fãs questionariam a “necessidade” de mais uma heroína: todas as suas antecessoras passaram por isso. Por seu nome ser derivado do Hulk, algo que é explicitamente reprovado pela própria protagonista, também não foi surpresa que um dos comentários tenha sido “por que estão transformando um herói homem em mulher?”. Essa pergunta domina todas as adaptações mais recentes que ousam, veja só, adaptar — e, quando não é sobre a mudança no gênero do personagem, é sobre sua etnia. Dito e feito: rolou uma avalanche de tweets desse tipo, ainda que este nome seja cânone nos quadrinhos há décadas.
Quer dizer, espertamente, She-Hulk fez com que seus próprios haters provassem seu ponto — e não com um monólogo, mas com piadas. Porque a verdade é que a misoginia começa antes de eventos como o incidente do revenge porn e o atentado, violências intensas com danos bem aparentes — e, que não fique dúvidas, também muito realistas. Seu pontapé está nesse desprezo banal, calcado não em uma crítica válida, mas na rejeição de algo que é parte da pessoa. Só que, mais efetivo do que discorrer páginas e páginas sobre um problema, é rir dele. É mostrar sua faceta ridícula. Por isso, da mesma forma que brincou com os vícios da Casa das Ideias, por que não zoar também os vícios de certos conservadorismos e, assim, propor uma discussão? Estamos os dois, aqui e agora, tendo essa conversa, não é?
Por isso, mesmo que você genuinamente tenha odiado o CGI e achado a série um saco, não dá para negar que, no mínimo, She-Hulk demonstrou a ousadia de não só de ser diferente, mas de refletir sobre o que há de ótimo — teorias, debates, easter eggs, merchs — e o que há de ruim na cultura do fandom. Para uma produção que se propôs a acolher novos espectadores, sua missão foi cumprida.
A primeira temporada completa de She-Hulk está disponível no Disney+.