TELA QUENTE - Regras da atração: #MeToo e coordenadores de intimidade - Parte 5
No momento em que toda uma geração discute o lugar da sexualidade na mídia, Omelete fala com cineastas e especialistas para destrinchar a história d’Aquilo na tela grande
O ESPECIAL TELA QUENTE é uma reportagem do Omelete sobre a história da representação do sexo no cinema, os debates atuais em torno dela, e o impacto na indústria do audiovisual. Composto de seis matérias jornalísticas apoiadas em pesquisa e entrevistas com diversos especialistas - psicólogos, críticos, cineastas, coordenadores de intimidade e mais -, o especial será postado em capítulos entre os dias 2 e 6 de setembro (ou 6/9, quando é comemorado o Dia do Sexo).
- Leia aqui a Parte 1 - Introdução: O thriller erótico morreu?
- Leia aqui a Parte 2 - Rala-e-rola em P&B: História do sexo no cinema
- Leia aqui a Parte 3 - Agora em cores!: Sexo LGBTQIAPN+ no cinema
- Leia aqui a Parte 4 - Emmanuelle(s): Diretoras mulheres e o sexo no cinema
“Acho que muita gente se incomoda em assistir cenas de sexo por saber que, historicamente, muitas delas foram realizadas com dinâmicas bastante problemáticas”, arrisca a crítica e pesquisadora Isabel Wittmann. Exemplos do que ela está falando, infelizmente, não faltam: o caso de Maria Schrader, que foi surpreendida pelo diretor Bernardo Bertolucci e pelo ator Marlon Brando no set de O Último Tango em Paris, quando os dois a coagiram a encenar uma violenta sequência de sexo entre a personagem dela e o de Brando, que não estava no roteiro e nem foi conversada com ela antes das filmagens, é emblemático… mas passa longe de ser único.
Em 2016, o movimento #MeToo expôs histórias de assédio e abuso sexual que pontuam diversas indústrias no mundo todo - incluindo a do entretenimento. Em adição às muitas denúncias de comportamento impróprio nos ambientes corporativos do negócio do cinema, não faltaram relatos de situações constrangedoras e abusivas na hora de gravar as cenas íntimas em grandes e pequenas produções cinematográficas. Esses relatos vieram em subtons diversos: atrizes e atores que foram pressionados e ameaçados a fazer cenas íntimas que não estavam no roteiro, intérpretes que sentiram seus corpos expostos de forma muito mais intensa do que o combinado, cineastas que se inseriram nas gravações de cenas íntimas como forma de satisfazer fetiches em nome da “autenticidade na arte”.
“Hoje, temos no set o papel relativamente novo do coordenador de intimidade”, aponta Wittmann. “Existe um cuidado maior em como vão se dar essas interações sexuais na frente e atrás das câmeras - mas nem sempre foi assim, e o público sabe disso”.
O cargo de coordenador de intimidade não foi criado após as denúncias do #MeToo, mas certamente passou a ser usado com muito mais frequência, e se expandiu para além de Hollywood e da Europa, após esse confronto direto entre produtores e público quanto às práticas abusivas da indústria. Maria Silvia Siqueira Campos, a primeira profissional brasileira a conseguir o certificado para trabalhar na função, explica ao Omelete exatamente como entrou nesse mundo - e qual é sua atuação em um set de filmagens.
“Essa coisa do coordenador de intimidade veio de fora, um dos grandes streamings gringos que atuam no Brasil chegou dizendo que precisava ter esse profissional no set, que não podia mais trabalhar sem ele estar presente lá. Para eles, isso envolve uma série de questões legais, exigência de sindicatos, além da percepção pública”, relata ela. “A partir daí eu tive a oportunidade de fazer um curso de 90 horas, que não é um curso barato - e tem até prova prática no meio!”.
A função do coordenador de intimidade, revela Campos, é planejar as cenas íntimas minuciosamente antes das gravações: “O meu trabalho ali é zerar o constrangimento, fazer as pessoas saírem do trabalho se sentindo protegidas, satisfeitas. Eu sei que fui bem sucedida quando ninguém saiu falando ‘ai, fiquei pelada tempo demais’, ‘meu corpo ficou à mostra demais’, ‘fiz o que não queria’. Não, tudo foi combinado antes, todo mundo está sabendo o que vai acontecer antes, tudo é coreografado, e todo mundo se sente mais seguro. Não existe mais o ‘ah, já que vocês estão aí na cama, porque não fazem isso aqui também?’”.
“É curioso perceber também que muitos diretores não estão acostumados a fazer esse planejamento. Eu fiz uma série recentemente em que, uns dias antes do começo das filmagens, cheguei para os diretores e perguntei: ‘E aí, como vamos fazer essa cena íntima aqui?’. E eles ficaram surpresos, porque era só episódio sete ou algo assim, bem mais para frente na agenda de gravações”, continua ela. “Mas tem que pensar antes! Eu entendo que questões de locação e storyboard virão depois, mas é necessário planejar, criar juntos aquela cena para que ninguém seja surpreendido na hora das filmagens. É uma questão de organização”.
O background da profissional como preparadora de elenco dá também a oportunidade de refletir sobre as transformações que vieram com a inclusão dessa “nova” função no set de filmagens: “No passado, presenciei situações muito ruins. A atriz chegava no dia das filmagens de camisolinha, o ator com a samba-canção dele, e o diretor na hora inventava o que queria, exigia coisas mais quentes, mais nudez do que eles estavam esperando. É muito difícil, naquele momento, você levantar e falar ‘não, não quero’. Então já vi, muitas vezes, pessoas fazendo coisas que não eram ok para elas, e eu não tinha muito o que fazer como preparadora de elenco - era correr para tentar mitigar a situação, ao invés de prevenir que ela acontecesse.”
O cineasta Marcelo Caetano também elogia o trabalho dos coordenadores de intimidade, e as “discussões levantadas” por eles nos últimos anos. “Se desenvolveu uma série de técnicas para os atores e atrizes se verem cada vez mais participativos na construção dessas cenas. Acabou essa história de chegar para gravar a cena de sexo e não discutir nada… 20 anos atrás, o máximo que se fazia era pedir para que as pessoas que não eram necessárias para a gravação saíssem do set”, reflete ele. “Hoje, a gente para um pouco e fala de onde vai estar a câmera, qual parte do corpo vai ser mostrada - os atores têm que ser parte ativa daquilo, têm que ajudar a encenar aquele desejo não no susto, sem orientação, mas na coreografia e no storyboard”.
“No começo, muita gente na indústria foi relutante, ouvi muito coisas como: ‘Ah, a gente sabe como fazer cena de intimidade! É só usar o bom senso!’. E não é, gente, não é simples assim. O bom senso de uma pessoa pode não ser o da outra”, completa Campos. “Nos meus anos antes de assumir esse papel, já tinha participado da feitura de inúmeras cenas íntimas, e não existiam as regras, as diretrizes, os limites que a gente vê hoje. E tem que ter, porque são humanos que estão ali, e humanos têm o direito de dizer ‘sim’ ou ‘não’ para as coisas. Agora existe um protocolo para tudo, seja uma cena de primeiro beijo que envolve atores mais jovens, ou uma cena de parto - que a gente não pensa sobre, mas é super íntima, a mulher ali com as pernas pra cima e um ator com a cabeça no meio”.
Em contrapartida a essa relutância inicial, a primeira coordenadora de intimidade do Brasil tem visto uma nova geração de artistas chegando ao audiovisual com uma mentalidade já muito diferente. Sempre cheia de histórias para contar, Campos explica essa mudança em termos anedóticos: “Em um set que eu estava recentemente, um diretor pediu para uma assistente de direção deitar no chão para ajudar a testar um enquadramento - basicamente, ela fingindo que seria a atriz na hora de filmar a cena. Ela foi lá e fez, tranquilo, mas daí o diretor falou assim: ‘Agora queria que o ator deitasse em cima de você para ver se ele cabe na imagem’. Nesse momento ela disse que não, que não era confortável para ela. E o diretor na hora entendeu, disse que não precisava, sem estresse nenhum! Uma assistente de direção, uma estagiária da estagiária, colocou ali o limite dela… e ficou tudo bem!”.
Mas, afinal de contas, em meio a esse cenário cinematográfico que se desenvolveu e se transformou tanto dos primeiros curtas-metragens do final do século XIX até o audiovisual do pós-#MeToo, a quantas anda o sexo no cinema - e para onde queremos que ele vá?
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