O Agente Secreto é mais um filme de ditadura? Não, deixe de pirraça
Produção de Kleber Mendonça Filho, com Wagner Moura, está em cartaz nos cinemas.
Créditos da imagem: Victor Jucá/Cinemascópio
Se você entrar em qualquer post, seja no Instagram ou no X, sobre O Agente Secreto, a chance de encontrar um comentário reclamando de “filme de ditadura” é altíssima. A grande ideia de alguns ataques ao filme é desmerecer o escolhido do Brasil ao Oscar por ser uma “história de ditadura”. Mas será que o filme de Kleber Mendonça Filho é realmente sobre isso? Se for, qual seria o problema em abordar o período mais uma vez?
Primeiro é importante dizer que rotular o cinema nacional pelos temas, e não pelo gênero, além de desmerecer o período citado, faz parte de um discurso eternizado pela falta de conhecimento e acesso que atinge boa parte dos comentários sobre o setor. O cinema nacional não é só sobre ditadura, favela ou comédia. Mas e se fosse, qual é o problema?
O Agente Secreto é o novo Ainda Estou Aqui?
Com o contexto do Oscar em mente, é preciso entender uma coisa: O Agente Secreto não é Ainda Estou Aqui — e isso é ótimo. Enquanto o filme de Walter Salles é uma trama universal e didática sobre os crimes do período da Ditadura Militar brasileira e as consequências em um microcosmo — representado pela família de Eunice Paiva —, o roteiro de Kleber Mendonça é mais sobre cultura, memória e ao seu apagamento. Ao contrário do filme estrelado por Fernanda Torres, a história de O Agente nunca toca no termo “Ditadura Militar”. Vemos os presidentes da época em quadros, o comportamento das autoridades e das instituições públicas no período, mas o termo nunca é mencionado. O que só deixa ainda mais evidente como o burburinho online sobre o filme “ser sobre ditadura" é outro mérito da narrativa escolhida, já que mesmo sendo um fato não abordado literalmente, se tornou pauta na internet.
- O Agente Secreto | Entenda a história real da "Perna Cabeluda"
- O Agente Secreto, Brasil e Oscar 2026 | Ouça o episódio especial do De Quinta Podcast
Afinal, Marcelo, o personagem de Wagner Moura, sente na pele a opressão vinda do sul do Brasil, sem nunca citar os militares. Bobbi (Gabriel Leone) e o padrasto o perseguem sem usar fardas, mas o passado de Augusto (Roney Villela) e sua ligação com o delegado não deixam dúvidas de que eles vivem sob as bênçãos da opressão do período.
Por isso, O Agente Secreto, assim como Ainda Estou Aqui, não são “filmes de ditadura”. A ditadura é parte da história do suspense ou do drama, respectivamente. O sucesso de Ainda Estou Aqui não se deu por panfletos ou fatores históricos, mas pela universalidade do drama — o gênero correto do filme — da família Paiva. O mesmo vale para outros filmes, como o indicado ao Oscar O Que É Isso, Companheiro?, um filme de ação que usa o sequestro do embaixador americano para contar essa história.
Simplificar o cinema brasileiro é pirraça
O apagamento histórico é determinante para entendermos o porquê dessa cobrança aos filmes nacionais - e o que faz O Agente ser tão relevante. Ao contrário de produções americanas, que lotam as salas de todo o país há décadas com suas histórias heroicas da Segunda Guerra Mundial, tramas de superação na Guerra do Vietnã e dramas baseados em figuras históricas e momentos como a luta pelos direitos civis, as histórias brasileiras sempre são preteridas como “filme de ditadura”, “filme de favela”, “filme de putaria”. É um preconceito histórico que passa pela soberania do cinema hollywoodiano — e sua estratégia tradicional de propaganda — e ganha ainda mais força em períodos de censura, como a Ditadura Militar.
Dunkirk, Oppenheimer, Bastardos Inglórios, Jojo Rabbit, Zona de Interesse — apenas para ficarmos nos filmes indicados ao Oscar de Melhor Filme nos últimos anos — não sofrem com o rótulo de “filme de Segunda Guerra”, como os brasileiros O Agente Secreto, Ainda Estou Aqui e Marighella. Não é à toa que o personagem de Udo Kier cause tanto fascínio no delegado (Robério Diógenes) de O Agente Secreto. A guerra vencida pelos americanos e seus aliados é vista como heroica, como símbolo de galãs e momentos cinematográficos que “moldaram o mundo como conhecemos”.
E, por conhecermos mais da história da América do Norte do que da nossa própria, muitos não enxergam — ou se recusam a ver — que a Ditadura moldou o Brasil como o conhecemos também. É impossível falar de Cidade de Deus, por exemplo, sem o contexto da construção da comunidade na década de 1960, com a retirada das favelas para o projeto urbanístico de Carlos Lacerda — que apoiou o golpe de 1964 antes de formar uma frente contra o governo militar nos anos seguintes. Isso é história.
Rotular O Agente Secreto como “filme de ditadura” é reduzir a riquíssima história que Kleber Mendonça Filho conta. É esmagar a cultura nordestina, o carisma e o legado de Sebastiana com seus “refugiados” em um preconceito barato que vai ainda mais fundo quando percebemos que não passam de pirraça. Mas, acima de tudo, é minimizar a força do cinema nacional e a exploração de seus gêneros, que só neste ano teve: thriller político (O Agente Secreto), distopia (O Último Azul), faroeste (Oeste Outra Vez), terror fantástico baseado na Guerra do Paraguai (A Própria Carne), história de máfia (Os Enforcados), aventura infantil (Chico Bento e a Goiabeira Maraviósa), drama (Manas, Vitória), cinebiografias musicais (Homem com H) e por aí vai.
[Texto originalmente publicado no lançamento do filme nos cinemas brasileiros]
Excluir comentário
Confirmar a exclusão do comentário?
Comentários (0)
Os comentários são moderados e caso viole nossos Termos e Condições de uso, o comentário será excluído. A persistência na violação acarretará em um banimento da sua conta.
Faça login no Omelete e participe dos comentários