Marco Pigossi tem acompanhado o momento vitorioso do cinema brasileiro de longe - mas com um olhar atento. O ator, que vive em Los Angeles (EUA) desde 2018, conversou com o Omelete sobre os filmes nacionais que lhe tocaram nos últimos anos, e como sua nova produção Maré Alta, em cartas nos cinemas a partir do dia 20 de março, se encaixa no mesmo fluxo de títulos como Ainda Estou Aqui e Baby:“ Acho que entra um pouco nesse lugar da gente se ver, e aqui é sobre se ver também fora do Brasil”.
A história do longa - que acompanha um imigrante brasileiro em Provincetown (EUA), refúgio da população gay estadunidense desde meados dos anos 1980 - tem ecos de autobiografia tanto para Pigossi quanto para o diretor e roteirista Marco Calvani. O casal (os dois oficializaram a união em 2023) falou em detalhes ao Omelete sobre essa primeira colaboração, as inspirações que a motivaram, e o futuro da sua parceria artística. Confira!
OMELETE: Pigossi, no passado você falou sobre ter se mudado para os Estados Unidos, e como isso te ajudou também a falar mais abertamente sobre a sua sexualidade. Como Maré Alta entra nesse contínuo, para você? A história do Lourenço reflete um pouco a sua?
PIGOSSI: De alguma maneira, sim, né? Maré Alta, para mim, é o encerramento de um ciclo. Um ciclo de autoaceitação, de me entender como um homem gay no mundo. O filme traz outras questões muito interessantes também, mas para mim é o encerramento de algo que começou com uma declaração. Depois veio a produção do Corpolítica [documentário sobre candidatos LGBTQIAPN+ que concorriam a cargos nas eleições municipais de 2020], para trazer à frente essas pessoas que estão ali na luta da política institucional. E agora eu chego no Maré Alta para falar disso através do meu ofício, do que eu sei fazer como ator.
Eu tinha sim essa vontade muito, muito grande de fazer um personagem que falasse sobre as vivências, as alegrias, as dores, de um homem gay no mundo, e principalmente um imigrante latino nos EUA, né? Então, eu acho que o filme vem para encerrar esse ciclo, e foi muito bem recebido nos Estados Unidos, as pessoas gostaram muito. O Maré Alta tem uma temática LGBT clara, porque a gente está falando de um romance entre dois homens, mas também tem mil outras camadas. Eu acho que todo mundo se identifica de alguma maneira, um pouquinho, com o Lourenço.
OMELETE: Eu ia perguntar disso também. Vocês dois são imigrantes lá nos Estados Unidos. Eu queria saber, principalmente do Calvani, se é especial poder contar a história de um outro imigrante - e como a história do Lourenço também reflete a sua?
CALVANI: Reflete de muitas formas. Não é uma história autobiográfica, mas tantas características da vida do Lourenço estão próximas da minha, especialmente no momento em que comecei a conceber a história e a escrevê-la. Era o começo da pandemia, eu estava vivendo num limbo. Graças a Deus, fui presenteado com saúde, mas com isso veio muito tempo para escrever e refletir sobre as coisas de uma maneira diferente, como o mundo todo estava fazendo. Eu estava vivendo num espaço muito isolado, ao mesmo tempo em que o mundo estava mudando tão rapidamente ao meu redor. A maior questão na minha mente e no meu coração era: ‘Para onde estou indo agora? O que estou fazendo aqui?’.
E essas são questões que estão sempre presentes se você é um imigrante, se você é uma pessoa que vive no exterior. Quando você carrega memórias, bonitas ou não, de onde você vem… mesmo que você não queira voltar, como eu não quero voltar para a Itália e o Lourenço não quer voltar ao Brasil, você continua em fluxo e movimento constante. Às vezes, você nem sabe em qual direção está indo. Quando comecei a conceber Maré Alta, eu estava nesse lugar, não sabia o que seria de mim.
Ao mesmo tempo, eu estava passando por uma grande transformação, por causa do tempo que estávamos vivendo, um grande choque cultural. Era a primeira administração [de Donald] Trump, que revelou ainda mais todo o racismo sistêmico que está na base da sociedade americana. George Floyd foi assassinado. Isso tudo estava acontecendo quando eu estava escrevendo o roteiro. E todos esses elementos fizeram com que eu me sentisse muito pequeno, muito vulnerável. Eu sou um artista, e tudo o que posso fazer é transcender e traduzir a realidade em que vivo, dentro e fora de mim, em algum tipo de material. Sinto que todos esses elementos me mantêm muito perto de Lourenço.
OMELETE: Pigossi, você é um dos atores brasileiros de maior destaque lá em Hollywood atualmente. No decorrer do último ano, com Ainda Estou Aqui e todo o sucesso do nosso cinema, você viu a atitude do pessoal de lá mudar um pouco em relação aos nossos filmes? Eles falam mais com você sobre isso?
PIGOSSI: Eu acredito que sim. Primeiramente, obrigado por me colocar entre esses nomes brasileiros em Hollywood, temos tantos talentos maravilhosos, né? Mas eu acho que é um momento muito bonito do cinema brasileiro, uma safra riquíssima, e uma retomada aí depois de quatro anos de criminalização do cinema. Tem uma coisa linda acontecendo que é a reunião do público com o artista, após um momento em que houve a criminalização dos artistas. Agora está todo mundo junto de novo.
E foi uma safra que foi muito além do Ainda Estou Aqui... claro que esse filme quebrou todas as expectativas, foi um escândalo, no sentido de levar o Brasil para o mundo, mas a gente teve Malu no Festival de Sundance, Baby no Festival de Cannes, o filme do Gabriel Mascaro [O Último Azul] ganhando prêmio no Festival de Berlim. Então, assim, é muito, muito bonito tudo isso, para trazer atenção para o nosso cinema, para a nossa potência, para a nossa cultura.
É muito legal estar vivendo esse momento e estar lançando Maré Alta dentro desse momento. Apesar do nosso filme ser essencialmente uma produção americana, é uma história muito brasileira. E eu acho que entra um pouco nesse lugar da gente se ver, e aqui é sobre se ver também fora do Brasil. Os filmes que ganharam destaque [no último ano] são filmes que trazem muito da nossa cultura, mas aqui dentro, enquanto Maré Alta traz uma visão diferente do que é um brasileiro lá. É um momento muito feliz para o nosso cinema.
OMELETE: Bom, você sabe também que aqui no Omelete a gente adora Gen V. Conta para a gente: Como foi gravar aquela sua cena de morte incrível? E se o Eric Kripke te ligar e falar ‘inventamos um jeito de você voltar’, você volta?
PIGOSSI: Já pensou? ‘Vamos voltar, descobrimos um novo poder, agora você vai ter sete vidas, sete cabeças explodindo’. Eu voltaria, eu acho. Foi uma experiência muito interessante. Não sei se gostaria de fazer parte do elenco fixo, aparecer em várias temporadas, porque é uma série que dá muito trabalho para fazer, uma produção longa. E isso, como ator, te deixa preso durante muito tempo, né? Agora eu estou nessa paixão com o cinema independente, não gostaria de deixar isso para trás. Mas eu voltaria, se fosse uma participação interessante.
E a cena de morte foi muito legal gravar, foi muito divertida. Primeiro que é uma superprodução, né? Foi a primeira vez que eu estive num lugar que tinha um orçamento, uma estrutura tão grande - mas, ao mesmo tempo, é um desafio enorme, porque a gente filma com nada. É a gente reagindo a nada, tudo é feito no computador depois, tudo é VFX. E aquela cena foi muito interessante porque ela foi feita por etapas, e depois no digital se junta tudo. Primeiro você faz a maquiagem, vai ficando vermelho, de repente te avisam que explodiu. E aí é um corpo sem cabeça que a gente põe lá diante da câmera, e depois eles juntam tudo. É muito técnico, e a experiência no set é muito diferente do resultado final.
Mas foi uma experiência muito rica para mim, foi muito divertido. E é um elenco muito legal, jovem, a gente se deu super bem. Foi muito maravilhoso.
OMELETE: Me corrijam se eu estiver errado, mas o Maré Alta é a primeira vez que vocês trabalham juntos num filme. Queria saber: Vocês já estão pensando em mais oportunidades de colaboração? Que tipos de histórias vocês querem contar no futuro juntos?
PIGOSSI: Sim! É o primeiro longa-metragem dele, e meu primeiro filme nos Estados Unidos.
CALVANI: É claro que já estamos pensando no próximo, já temos um par de roteiros [em desenvolvimento]. Tem um que é mais focado em personagens femininas, mas tem um papel para o Marco… e outro que é adaptação de uma peça minha, que eu escrevi especificamente para ele. Eu sou assim, já tem 17 histórias diferentes correndo na minha cabeça agora - mas o próximo, provavelmente, é uma história que se divide entre Nova York e o Brasil. Isso pode nos dar a oportunidade de vir filmar aqui também.
Acho que, quando a gente se conheceu, percebemos que temos um gosto parecido, e os mesmos valores na arte, nas história que queremos contar. Tendemos a usar nosso espaço, o privilégio do nosso trabalho, para dar voz a pessoas que realmente não têm voz no mundo, revelar aspectos da nossa vida que são até desagradáveis. Achamos que é importante fazer isso para destruir um pouco da ignorância e do medo na humanidade.
OMELETE: Pigossi, estou muito curioso com outro projeto que você tem pela frente, que é O Quarto do Pânico. Por que você decidiu abraçar esse projeto? E você pode nos contar quão próximo do original esse remake vai ser?
PIGOSSI: Eu decidi fazer esse filme por causa da Gabriela Amaral, que é a nossa diretora. Acho ela uma artista fantástica, brilhante e uma pessoa incrível. E depois a gente juntou um elenco maravilhoso, né? A Isis [Valverde], o Caco Ciocler, o André Ramiro. São pessoas com quem eu já tinha trabalhado, e com quem que eu adorava trabalhar. E eu sabia que a Gabriela ia conseguir trazer um frescor, um novo olhar sobre esse filme. Ele não é um remake, ele é uma releitura. É adaptado para a nossa realidade de violência urbana, para nosso universo.
O filme original é muito bem feito, né? David Fincher, não tem como a gente querer refazer do mesmo lugar que ele. Então, é uma releitura nossa, apesar de manter muito da essência do original. Mas eu acho que o roteiro do original - e eu estou me arriscando a dizer, porque a gente tem que puxar a sardinha para o nosso cinema - dá muito a sensação que os personagens servem à trama. As pessoas ali existem para empurrar a história. O que a Gabriela quis fazer é o contrário, a história servindo aos personagens.
Pra fazer isso, a gente trouxe muito mais bagagem, background. Contamos a história desses personagens, por que aquilo tudo está acontecendo, e principalmente a relação entre eles. É um filme muito, muito interessante, estou muito animado. E é um Pigossi que eu acho que ninguém nunca viu, fui para um lugar que eu nunca consegui ir como ator. É a primeira vez que eu estou nesse lugar da violência, e violência pelo prazer da violência, sabe? É um personagem muito profundo e doloroso nesse sentido.
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