Karim Aïnouz nos bastidores de Motel Destino (Reprodução/Instagram)

Créditos da imagem: Karim Aïnouz nos bastidores de Motel Destino (Reprodução/Instagram)

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Entrevista

Karim Aïnouz: Cinema brasileiro “está contando histórias mais claras e potentes”

Cineasta serviu como mentor em projeto de curtas cearenses que vai para Cannes 2025

Omelete
11 min de leitura
14.05.2025, às 06H00.

Para Karim Aïnouz, o projeto Directors’ Factory é uma oportunidade de ajudar o audiovisual brasileiro a caminhar na estrada de uma constância produtiva que simplesmente não foi a realidade da nossa indústria até anos mais recentes. “Esse projeto da Factory faz parte de um processo de formação de roteiristas que a gente tem há mais de 12 anos no Ceará. Existe nisso a consolidação de uma promessa - a promessa de sermos um player global de verdade”, comenta ele em entrevista ao Omelete, às vésperas de sua viagem ao Festival de Cannes 2025 para promover a iniciativa.

Realizada com o apoio do Governo do Ceará e da Quinzena dos Realizadores, uma das mostras paralelas mais fortes do evento francês, a Directors’ Factory selecionou quatro cineastas cearenses estreantes e os pareou com quatro realizadores estrangeiros, resultando na produção de quatro curtas-metragens dos mais diversos gêneros e tons. Aïnouz agiu como “padrinho” da iniciativa - termo usado pela divulgação do projeto, mas que ele mesmo rejeita na conversa abaixo -, acompanhando a produção dos curtas e viajando com os cineastas para promovê-los em Cannes.

Os filmes resultantes (A Fera do Mangue, A Vanqueira, A Dançarina e o Porco, Ponto Cego e Como Ler o Vento) serão exibidos na abertura da Quinzena, nesta quarta-feira (14). A seguir, confira a entrevista completa de Aïnouz ao Omelete.

OMELETE: Olá, Karim! Sou o Caio, do Omelete, já conversamos na época da estreia do Motel Destino. Tudo bem?

Os cineastas que participaram do Directors' Factory (Divulgação)
Os cineastas que participaram do Directors' Factory (Divulgação)

AÏNOUZ: Oi, Caio! Bom falar contigo de novo.

OMELETE: Primeiro, que projeto incrível o Directors’ Factory lá no Ceará. Para você, qual foi a significância de ter participado disso? E como é que está a expectativa de apresentar esses filmes lá em Cannes?

AÏNOUZ: Caio, eu só queria começar com um disclaimer, assim, pra iniciar nossa conversa. Eu queria muito evitar qualquer protagonismo nesse processo da Factory, entendeu? Não bota muita foto minha, deixa os meninos protagonizarem. O palco é deles, não é meu. Queria deixar isso claro, e também pedir para não me chamar de ‘padrinho’ do projeto. Pelo amor de Deus… não tem a menor condição, gente, é 2025. Eu estou aqui como produtor, ou no máximo mentor de produção, desses filmes.

Mas, respondendo a sua pergunta, eu tô muito animado. Não só tô animado com com a exibição dos curtas, que começaram a partir da escolha das duplas de diretores, mas também com a ideia de captar recursos para os primeiros longas-metragens desses realizadores e realizadoras. A exibição é a ponta do iceberg, digamos assim. O que tem de mais importante é que esses realizadores estão indo para o mercado, para financiar os seus projetos de longa-metragem. E o mais legal é você poder ter um combo, uma combinação, mesmo que nenhum dos curtas tenha a ver com os longas que eles estão fazendo.

Isso foi um laboratório, uma experimentação de direção, de co-realização. E aí eu acho que o mais legal é para onde isso pode levá-los, as possibilidades que se abrem para o futuro com os projetos de longa desses realizadores.

OMELETE: Legal. E você se definiu aí como mentor, ou mentor de produção… o que implicou esse papel? Você acompanhou o desenvolvimento de cada curta bem de perto?

AÏNOUZ: Olha, o processo começou lá atrás com uma seleção das pessoas que estariam envolvidas, das nossas duplas de direção - e eu não fiz parte dessa seleção, só muito colateralmente. A ideia era selecionar cineastas que tivessem projetos de longa-metragem em andamento, e depois fazer essa junção que era interessante: um diretor do Amazonas, e uma diretora franco-egípcia. Acho um desenho super bonito, que foi feito pelo pessoal da Quinzena dos Realizadores junto com uma equipe do Ceará, do Porto Iracema das Artes. Eu acompanhei isso desde o começo, mas não fui parte ativa dessa escolha dos participantes.

Então onde eu entro? O pessoal veio para mim com as duplas, e no último mês de novembro eu sentei com elas e comecei a discutir as ideias para os curtas. Eles não vieram com um projeto já pronto, então foi uma reunião em que eles traziam ideias, sinopses possíveis. E foram várias delas, a gente não foi muito rígido, não quisemos dar uma baliza muito forte - foi um trabalho de exploração mesmo. A partir da sinopse vem um argumento, e depois um roteiro, tudo enquanto a gente teve várias oportunidades de sentar e conversar. Acho que o meu trabalho foi muito facilitar a clareza narrativa, até porque a comunicação entre essas duplas internacionais nem sempre era fácil. Eu estive muito perto delas durante a elaboração da última versão do roteiro - não que eu tivesse poder de veto, mas para orientar e apontar, até para ter certeza de que várias duplas não estivessem fazendo o mesmo filme. [Risos]

Era muito importante para a gente desenvolver filmes que fossem, de alguma forma, um exercício de gênero cinematográfico. Você tem um faroeste, um filme de observação, um curta que é mais voltado pro realismo fantástico… era sobre entender esses gêneros, criar ali uma diversidade dentro do pacote do projeto. Ficamos atentos a isso durante o processo do desenvolvimento, e eu continuei tendo reuniões de realização com os cineastas, perguntando sobre decupagem, formato, fotografia, gramática visual. Falando com os diretores, os diretores de arte, os diretores de fotografia. Acho que meu trabalho era muito fazer as perguntas certas, também, para que eles pudessem ter clareza de como cada equipe estava trabalhando. 

Continuei muito perto deles durante as filmagens - pedia para receber todos os dias o que eu chamo de stills, que são as fotos de cada plano que eles gravavam, para saber como estavam adequando o que a gente tinha conversado na execução. Enfim, eu via esse material, conversava sempre que podia com as equipes de arte, de elenco, e por fim acompanhei de perto os processos de montagem, marcação de luz. Tentei facilitar, perguntar mais do que responder. É um trabalho que qualquer bom produtor faz, para ser sincero, e por isso até acho que esse negócio de “padrinho” fica meio feito, meio patriarcal. Eu era um produtor, colocando o autor à frente e tentando entendê-lo, ajudá-lo a ser claro com que estava tentando fazer, preciso nos processos.

Para mim isso foi um tesão, porque é como se fosse um exercício de formação mesmo. Eu e eles aprendendo mais sobre essa relação entre produtor e diretor.

OMELETE: Bacana. E outro aspecto do projeto, que você até citou aí, é a participação no Marché du Film. Esse acho o Brasil foi escolhido como o país de honra do Marché - para você, o que essa escolha sinaliza? E qual é a expectativa dessa participação?

Karim Aïnouz e o elenco de Motel Destino no Festival de Cannes 2024 (Reprodução/Instagram)
Karim Aïnouz e o elenco de Motel Destino no Festival de Cannes 2024 (Reprodução/Instagram)

AÏNOUZ: Olha, eu acho que Cannes é um lugar que está muito ligado no temo que a gente vive, né? Eles têm um radar muito forte para o que está acontecendo no mundo. Então acho que não é à toa [a escolha do Brasil] -  pensa um pouco o que aconteceu nos últimos quatro anos, depois que a turma da extrema direita saiu do governo, existiu de fato uma retomada muito forte do nosso cinema. Tivemos o Oscar [de Ainda Estou Aqui] com o Walter [Salles], tivemos nossa participação em Cannes ano passado [com Motel Destino, de Aïnouz, e filmes como Baby e A Queda do Céu em mostras paralelas], tivemos o Gabriel [Mascaro] e o prêmio [de O Último Azul] no Festival de Berlim, tivemos uma seleção bastante robusta lá naquele festival, tivemos o Walter e a Marianna [Brennand, de Manas] vencendo prêmios no Festival de Veneza.

Se você olha assim, percebe que tem ali uma série de eventos que foram sinalizando para o mundo que o Brasil tem uma cinematografia robusta e exuberante. Que nos recuperamos de um terremoto. Eu acho que Cannes entendeu muito isso, entendeu que existe ali um celeiro muito fértil. É um pouco engraçado, um pouco BRICS [grupo de cooperação econômica de países emergentes, encabeçado pelo Brasil], que eles tenham percebido que precisam olhar para essas cinematografias do Sul global, digamos assim. Mas é bonito também, é uma descentralização - assim como a Factory está fugindo do eixo Rio-São Paulo com esse projeto no Ceará.

Acho que o Brasil, dentro desse bloco do Sul global, tem uma das cinematografias mais fortes. Quando você pensa de maneira concreta, em termos de prestígio, de qualidade e de permanência, estamos liderando.

OMELETE: A última vez que a gente conversou, quando o Motel Destino estava sendo lançado aqui no Brasil, falamos bastante sobre esse momento de retomada do cinema brasileiro. Mas acho que, desde então, isso alcançou um patamar diferente, como você mesmo citou - como você definiria, então, o momento de agora? Se a gente já teve uma retomada, o que você vê para o futuro?

AÏNOUZ: Eu acho que a gente tá vivendo algumas coisas muito interessantes, uma consolidação do audiovisual. Não só no cinema, é importante a gente falar disso também, mas nas séries. A telenovela tem esse lugar de hegemonia ainda, mas aos poucos vamos ganhando outros protagonistas na nossa TV. Olha para o que Senna fez no ano passado, olha para a nossa produção no gênero criminal - eu acho que todas essas séries trazem maneiras muito interessantes de olhar para o Brasil. E existe algo ali muito forte, constante, perene. É legal ver que agora temos mais processos de formação. 

Esse projeto da Factory, por exemplo, faz parte de um processo de formação de roteiristas que a gente tem há mais de 12 anos no Ceará. Existe nisso a consolidação de uma promessa - a promessa de sermos um player global de verdade. O que tem de diferente nos últimos três, quatro anos, é que o audiovisual brasileiro está ocupando um lugar maior no Brasil, mas também no mundo. As plataformas de streaming entenderam que nós somos um mercado gigante para elas, e aí se estabeleceu uma troca, né? Nós nos sentimos mais vistos, então queremos nos ver cada vez mais.

Eu, obviamente, não tenho bola de cristal, mas também não sou bobo. [Risos] Então acho que é um momento muito especial para o audiovisual brasileiro como um todo, no cinema e na TV. Existe uma renovação, uma exuberância, acho que a gente está contando histórias de maneira muito mais clara e muito mais potente. O cinema narrativo é um cinema comercialmente mais competitivo, e os processos de formação que surgiram nos últimos anos nos ajudam a ter mais volume nesse sentido. Eu fiz uma série de TV lá em 2007 [Alice, da HBO], e lembro a loucura que era encontrar roteirista. Você tinha que montar um quebra-cabeça - um cara da Globo, um do cinema de arte.

Quando a gente começou os processos de formação no Porto Iracema das Artes, eu ficava chocado que não existia escola de roteiro no Brasil. Como assim? Nos Estados Unidos, a escola de onde saem mais cineastas não é a escola de direção, e sim a escola de roteiro. É maluco que, durante 30 anos, a gente não tinha formação de roteirista dentro das próprias escolas de cinema do Brasil. E é importante que agora a gente esteja olhando para isso, porque estamos vendo uma safra de novos roteiristas chegando para contar histórias no nosso audiovisual.

OMELETE: Já que você citou as séries e o streaming, um tema que está muito corrente agora é a regulação do streaming no Brasil. Tem um projeto passando pelo Congresso, que muitos talentos do audiovisual já apoiaram. Como você vê esse tema? É importante haver essa regulação?

Karim Aïnouz nos bastidores de Motel Destino (Reprodução/Instagram)
Karim Aïnouz nos bastidores de Motel Destino (Reprodução/Instagram)

AÏNOUZ: Caio, eu vou te fazer um outro disclaimer aqui: estou fazendo um filme novo agora, então estou meio num túnel de monovisão, tudo que está fora desse processo eu acompanho muito lateralmente. Tenho medo de falar bobagem, porque não tenho acompanhado essa discussão tão de perto quanto deveria, mas por princípio acho fundamental [a regulação do streaming no Brasil]. E acho fundamental que a gente consiga fazer isso de maneira clara, objetiva, dentro dos padrões do mercado. Evidentemente, porque ninguém aqui é doido.

Acho isso porque a gente corre um perigo gigante com a questão das plataformas de streaming - a padronização da nossa imaginação audiovisual. Estou querendo dizer aqui que, além da questão financeira, existe uma questão de liberdade artística. Acho que existe um movimento, que veio dos grandes estúdios e de outros lugares, que exige que os filmes passem por uma espécie de túnel de formatação. É comida ultraprocessada, sabe? Hoje, quando você vai para uma casa de finalização para finalizar seu filme, eles te trazem padrões de luz que você fica pensando: ‘Acho que já vi isso naquele streaming’.

Então, para mim, existe na regulação uma coisa de proteger a diversidade, não só visual mas também na maneira de contar histórias. O que foi muito triste durante o processo que a gente viveu no Brasil, com o governo da extrema direita, é que viramos prestador de serviço para essas plataformas. E que bom que elas estão aqui trazendo essas oportunidades e financiando projetos, mas também acho importante que continuemos tendo as histórias que falam português, sabe? O nosso jeito de contar, o nosso jeito de fotografar.

Eu não quero falar só de mim, mas só para citar um exemplo: quando eu fiz o Motel Destino, lembro que surgiu um debate sobre as cores serem muito fortes no filme. E eu sempre defendi, disse que esse era o jeito que eu via o mundo. Eu nunca vejo nada em cinza, sempre tem cor. A gente tem que garantir que os artistas possam expressar isso - e um jeito de conseguir essa garantia é ter uma espécie de participação no negócio gigante que são os streamings, obrigá-los a fortalecer as indústrias locais. Eles trazem inovação, o que é fundamental, mas acho maluquice que não exista regulação ainda.

OMELETE: Perfeito. Muito obrigado, Karim, e boa sorte em Cannes!

AÏNOUZ: Muito obrigado, querido. A gente se fala de novo em breve, um abraço!

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