Jackie, Spencer e Maria Callas (Reprodução)

Créditos da imagem: Jackie, Spencer e Maria Callas (Reprodução)

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Jackie, Spencer e Maria Callas: A trilogia das mulheres do século XX de Larraín

Filme com Angelina Jolie encerra excelente ciclo de cinebiografias do cineasta chileno

Omelete
6 min de leitura
17.01.2025, às 06H00.

Em Maria Callas, drama em que Angelina Jolie interpreta a diva-maior da ópera do século XX, o ator dinamarquês Caspar Phillipson aparece em duas breves cenas como John Fitzgerald Kennedy - o 35º presidente dos EUA, que foi assassinado 1963, mas antes disso cruzou caminhos com Callas em uma festa de aniversário luxuosa e (o filme postula, com alto grau de liberdade poética) um jantar privativo em que os dois discutiram o caso extramarital que seus parceiros, Jackie Kennedy e Aristotle Onassis, viviam um com o outro.

Não é a primeira vez que Phillipson interpreta Kennedy. De fato, a semelhança física entre o ator e o ex-presidente o levou a vivê-lo repetidamente - na série Projeto Livro Azul, por exemplo, e também em outro filme biográfico de uma figura feminina importante do século XX, este intitulado… Jackie. Lançada em 2016, a produção estrelada por Natalie Portman acompanha a primeira dama nas semanas após o assassinato de JFK, lidando com procedimentos oficiais e assegurando uma transição de poder suave na Casa Branca, tudo enquanto batalha contra o luto e tenta descobrir qual lugar lhe resta na vida pública após uma quebra tão violenta do status quo.

Esse ponto de conexão entre Jackie e Maria Callas, explorado com algum bom humor no segundo filme (em certo ponto do terceiro ato, as duas personagens-título passam muito perto de de cruzar no leito de morte de Onassis), não está aí a toa: ambos, afinal, também são filmes do cineasta chileno Pablo Larraín - e, com a adição de Spencer (2021), estrelado por Kristen Stewart como a princesa Diana, formam o que críticos e fãs do trabalho do diretor passaram a considerar uma trilogia.

Caspar Phillipson como JFK e Natalie Portman como Jackie (Reprodução)
Caspar Phillipson como JFK e Natalie Portman como Jackie (Reprodução)

Sem um nome oficial, a saga formada por Jackie, Spencer e Maria Callas talvez mereça ser batizada de “trilogia da performance”. Lá em 2016, afinal, Portman não só foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz por sua atuação em Jackie (assim como Stewart foi indicada por Spencer, e Jolie tem chances de indicação por Maria Callas), como o filme também parece ter transformado sua carreira, o tipo de prestígio que ela atrai e os temas que ela é chamada para explorar. Vale notar que, desde então - com a exceção de suas investidas no MCU - Portman tem vivido personagens que, de uma forma ou de outra, possuem uma relação com a performance.

Aniquilação (2018) termina com a atriz encarando um dublê de si mesma, espantada com a facilidade de substituir e emular o comportamento humano; Vox Lux (2018) esbarra na sátira ao mostrar uma popstar engolida pela persona controversa que construiu para si mesma; em Segredos de um Escândalo (2023), ela é uma atriz pesquisando a figura real que vai interpretar na TV. São atuações sobre atuar, projetos em que a graça não é ver a personagem - é ver Natalie Portman como a personagem. Há de se argumentar, talvez, que a estrela, até por seu passado de atriz mirim, sempre esteve nesse caminho… e ainda mais depois de vencer um Oscar por Cisne Negro (2009), essencialmente um terror sobre o sacrifício de performar. 

Mas Jackie, ainda sua única indicação ao prêmio da Academia após a vitória, certamente foi o filme que consolidou esse caminho de Portman como presença na cultura pop dos EUA. Apesar da fotografia sufocantemente íntima de Stéphane Fontaine e da trilha sonora orquestral opressiva de Mica Levi, afinal, o filme também se mostra refrescantemente consciente de si mesmo como cinebiografia - ele entende que, em certa dimensão, ninguém vai ao cinema para ver Jackie Kennedy, mas sim um simulacro dela, uma extrapolação dramática do que ela representou, a versão dela que cabe numa tela e pode ser imitada por uma estrela de Hollywood. 

Jack Farthing como Charles e Kristen Stewart como Diana (Reprodução)
Jack Farthing como Charles e Kristen Stewart como Diana (Reprodução)

A armadilha da biopic, como gênero, é que há algo de caricato e moralmente duvidoso nesse truque. A imitação (por mais brilhante que seja) nunca vai ser inteiramente humana, nunca vai representar a totalidade da pessoa, no final de contas, e é difícil negociar entre o tédio formulaico e o desrespeito à memória quando se está contando a história da vida de alguém. Os filmes de Larraín escapam dessa arapuca ao perguntar, espertamente, quais oportunidades surgem diante do teatro essencial da biopic, e o que é possível dizer com elas - para além, até, da vida que as biografadas levaram.

Daí que, se Jackie é menos sobre Jackie Kennedy e mais sobre Natalie Portman como Jackie Kennedy; Spencer é menos sobre a princesa Diana, e mais sobre Kristen Stewart como a Princesa Diana; e Maria Callas é menos sobre Maria Callas, e mais sobre Angelina Jolie como Maria Callas. Cada um desses filmes joga com o nosso interesse obsessivo por essas estrelas, incorpora a persona delas à persona da biografada, mistura trejeitos dessas duas mulheres e revela como elas se unem diante de ainda outra performance: a da feminilidade inserida na história.

As conexões entre as três mulheres escolhidas por Larraín, afinal, são no máximo circunstanciais. Jackie e Callas dividiram um amante. Jackie e Diana entraram na aristocracia por casamento, e saíram dela em circunstâncias violentas. Todas as três foram obscenamente famosas, e por isso mal-compreendidas pelo público e assediadas pela imprensa. Mas Callas foi a única artista, Diana foi a única que morreu ainda jovem, Jackie foi a única que recuperou certo prestígio e relevância cultural após o evento que a definiu nos livros de história. O que as une, além de serem mulheres em um espaço público? Bom, para os filmes de Larraín, isso é mais do que o bastante.

Angelia Jolie como Maria Callas e Haluk Bilginer como Aristotle Onassis (Reprodução)
Angelia Jolie como Maria Callas e Haluk Bilginer como Aristotle Onassis (Reprodução)

Jackie, Spencer e Maria Callas pretensamente invadem a privacidade desses ícones culturais femininos, retratando-as nos momentos onde não estão atuando para as câmeras… mas isso, também, é um truque. Ao nos fazer assistir três grandes estrelas de Hollywood incorporando essas mulheres, a trilogia de Larraín reflete pouco de quem elas eram entre quatro paredes - ao invés disso, ela foi feita para mostrar de forma oblíqua a infalibilidade insustentável que exigimos das figuras femininas da nossa cultura, mas também o prazer meio perverso que tiramos de vê-las falhando nesse teste, de enxergá-las como figuras trágicas e transformá-las em histórias fáceis. É o teatro cruel da notoriedade vivido por essas mulheres, replicado no teatro talvez um pouco mais gentil, ou ao menos mais compassivo, dos filmes que a representam.

Maria Callas termina com uma tomada do mordomo Ferruccio (Pierfrancesco Favino) e da criada Bruna (Alba Rohrwacher), os leais cuidadores de Maria em seus últimos dias, de frente para a câmera, braços dados e semblantes sóbrios, logo após encontrar o corpo da patroa no apartamento. Somente eles, e os olhares deles, são visíveis para o público. Minutos antes, no entanto, os dois estavam nas ruas, junto a uma multidão de pessoas, olhando admirados para a sacada de onde a ex-diva da ópera, com esforço monumental, dava uma última performance emocionante - uma sequência fantasiosa, é claro, não tão diferente daquela que fecha Spencer, com Diana sonhando com seu futuro pacífico ao lado dos filhos.

É uma maneira inspirada de terminar essa trilogia que é essencialmente sobre mulheres que estavam sempre atuando, porque precisavam estar. Que não entendiam como existir sem essa atuação, porque não deixamos que elas entendessem quem eram fora dela. E a gente, como fica nessa história? Bom… para o bem e para o mal, a gente só pode assistir.

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