Filmes

Crítica

David Fincher volta com O Assassino a procurar uma narrativa em torno do cinismo

Diretor exercita velhos músculos em um suspense de ação que conecta Melville e Soderbergh

Omelete
4 min de leitura
25.10.2023, às 14H54
ATUALIZADA EM 26.10.2023, ÀS 17H29
ATUALIZADA EM 26.10.2023, ÀS 17H29

Eu pareço um disco riscado aqui toda semana falando sobre como os filmes respondem ao capitalismo tardio, mas - e lá vamos nós - é inevitável voltar a isso no novo suspense de David Fincher. O Assassino seria só um thriller tradicional de matador de aluguel se não estivesse tão disposto a tratar, na verdade, de precarização do trabalho.

Michael Fassbender interpreta o assassino e, no papel de narrador da própria história, ele se comunica em off com o espectador com muito mais frequência do que conversa com os demais personagens do filme. Logo percebemos que o texto do assassino - em que ele nos apresenta a filosofia e os valores por trás da sua rotina sistemática - se presta menos a nos convencer e mais a convencer a si mesmo. Em O Assassino, o perfeccionismo não é uma excentricidade desprovida de contexto, e sim um sintoma de uma excitação neoliberal pela produtividade.

Sublinhar que o filme lida com questões socioculturais e econômicas é importante, aqui, para afastar a impressão inicial de que O Assassino é apenas um exercício formal, neste filme que Fincher realiza bancado pela Netflix com um gosto de passatempo. O diretor emula Jean-Pierre Melville e O Samurai (1967) desde o figurino do protagonista até a arte do pôster, e Melville era um mestre do filme policial pretensamente alienado. Estabelecer esse parentesco faz parte de uma operação de disfarçar de entretenimento barato o discurso de O Assassino.

Essa operação não envolve muito risco do ponto de vista criativo, porque Fincher aproveita o apoio da Netflix para exercitar velhos músculos; especificamente, aqueles de Clube da Luta (1999), em que Edward Norton também se mostra um narrador pouco confiável nos seus sofismas sobre consumismo, autoajuda e tudo-isso-que-está-aí. O fato de O Assassino reunir Fincher com o roteirista de Seven (1995), Andrew Kevin Walker, quase 30 anos depois, parece alinhado com esse resgate noventista, e no mais O Assassino também revisita a aproximação com a misoginia que marca os thrillers do diretor.

A questão então é saber como O Assassino e seu comentário contracultural se atualizam para os anos 2020, e se isso eleva o filme para além das suas evidências de literalidade. De um lado, há obviamente uma brincadeira aeróbica em curso, esse desafio de fazer um suspense com poucos diálogos e uma cadência quase musical, escorado na trilha onipresente de Trent Reznor e Atticus Ross. Do outro, ironicamente, as facilidades do capitalismo tardio tornam a missão de vingança do matador profissional absolutamente maçante, desde comprar na Amazon um clonador de cartões até entrar facilmente numa academia de alto padrão graças a um passe de uma semana grátis.

Esse atrito entre o desafio e o tédio é de onde o filme tira a sua força discursiva, ou pelo menos seu principal conflito interno. O tédio da operação meticulosa, formalista, é também um elemento central dos thrillers realizados por Steven Soderbergh nos últimos 15 anos, e nunca Fincher esteve tão próximo de seu contemporâneo americano quanto neste O Assassino. Toda a cena em que Fassbender passa pela Flórida no filme lembra o A Toda Prova (2011) de Soderbergh: o frenesi da porradaria e da destruição, cujo impacto se potencializa por sua gratuidade, a ação como uma coisa puramente mecanizada.

Em O Assassino, é por meio do tédio que se consuma uma percepção que acompanha o espectador desde o momento em que Fassbender aciona a maçaneta da WeWork: ser o narrador de sua própria história não o torna menos prestador de serviços num grande esquema de impessoalidade, peão do ofício terceirizado, com o agravamento de que não há adicionais de insalubridade no mundo dos matadores (ou dos PJs em geral, de qualquer forma). Obviamente esse é todo o ponto do filme, como a própria narração em off salienta nos minutos finais, mas é curioso acompanhar como Fincher e Walker tentam criar uma narrativa a partir da premissa de que tudo é dado ao protagonista - ao alcance de uma aproximação do cartão de crédito - e nada de fato se configura como obstáculo.

Esse pessimismo em relação aos nossos horizontes e toda a indiferença com que o filme trata a relação do personagem com o mundo fazem de O Assassino mais uma elaboração de Fincher em torno do tema do cinismo. No início da sua narração, Fassbender se adianta e se defende, diz que as pessoas confundem ceticismo com cinismo, mas convém lembrar que o ponto de vista do protagonista não é o mais confiável. O fato é que O Assassino fica mais cínico a cada minuto, e ao final, quando a luz do sol bate no rosto do personagem e supostamente o redime, talvez o amanhecer seja na verdade só mais um vislumbre do fim do mundo, como na explosão do final de Clube da Luta.

 
Nota do Crítico
Bom
O Assassino
The Killer
O Assassino
The Killer

Ano: 2023

País: EUA

Classificação: 12 anos

Duração: 118 min

Direção: David Fincher

Roteiro: Andrew Kevin Walker

Elenco: Sophie Charlotte, Charles Parnell, Tilda Swinton, Michael Fassbender

Onde assistir:
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