Muito se fala sobre como, para se tornar cult ou ser celebrado como “tão ruim que é bom”, um requisito é que a obra em questão não saiba que está se encaminhando para este lugar - mas se equilibrar nessa corda bamba da autoconsciência, especialmente na era pós-ironia, pós-metalinguagem em que vivemos, é um pouco mais complicado que isso. Há uma tendência a celebrar, hoje em dia, os filmes que “sabem muito bem o que estão fazendo”, as atuações que “têm plena consciência do filme em que estão”, a ideia do entretenimento que ajusta suas ambições para suas possibilidades, e do espectador que julga essa peça de entretenimento a partir desses parâmetros.
É compreensível o impulso de elevar essas qualidades, principalmente quando os grandes estúdios serviram rotineiramente, por anos a fio, uma dieta de “épicos” que tentavam disfarçar sua motivação caça-níqueis com um tom de auto importância insustentável. O cinismo de um Megatubarão, de uma Barbie, em certa medida até de um John Wick, se mostrou o antídoto certeiro para décadas de blockbusters de alto conceito, à la Michael Bay (e seus imitadores menos autorais). Acontece que, no pique de celebrar essa linha de raciocínio criativo, dando respiro ao trash dentro da lógica do cinemão comercial, coisas como Lisa Frankenstein escapam pelas rachaduras.
A ambição do filme escrito por Diablo Cody fica clara desde o início: fisgar o público millennial (com sorte, o Gen-Z) cronicamente on-line através de uma atualização da estética gótico-chic dos filmes noventistas de Tim Burton e uma adaptação do clássico Frankenstein, de Mary Shelley, com mensagem feminista ostensivamente subversiva injetada na premissa. Cody quer outro Garota Infernal, e quer um que não demore mais de dez anos para ser abraçado pelos cinéfilos - a roteirista, vencedora do Oscar por Juno, não está mais a fim de criar “filmes injustiçados”.
Aqui, Lisa (Kathryn Newton) é nossa protagonista que “não é como as outras garotas”, uma exacerbação caricata de Bella Swan (de Crepúsculo) com toques de Wandinha (de A Família Addams). É ela quem - como o Dr. Frankenstein da história original - rouba partes de cadáveres para construir o seu “homem ideal”, costurado e revivido por meio da eletricidade. A Criatura (encarnada no corpo de Cole Sprouse, um dos galãs millennials quintessenciais), no entanto, começa a causar caos na vida doméstica e escolar de Lisa, colocando-a em rota de conflito com a cruel madrasta Janet (Carla Gugino) e a gentil irmã postiça Taffy (Liza Soberano).
A trama se constrói em uma sucessão de pequenos conflitos encenados em tom conscientemente operático por Zelda Williams (filha de Robin Williams, aqui em sua estreia na direção de longa-metragens). O design de produção colorido e capenga de Mark Worthington (American Horror Story), a fotografia chapada de telefilme de Paula Huidoboro (No Ritmo do Coração), as performances de mimetismo exagerado entregues por Newton e Gugino… tudo é feito como se presumisse uma piscadela para o público, um convite para que percebamos e apreciemos o quanto Lisa Frankenstein “sabe o tipo de filme que é” - mas é difícil gostar dele por isso quando Cody, Williams e cia. tão claramente não amam o filme que estão tentando fazer.
Porque essa é a parte daquele dilema sobre autoconsciência que as pessoas não parecem entender, ou ao menos verbalizar: não é que seja impossível fazer um filme cult de propósito - é que, se você quer fazer um desses… bom, você precisa querer fazer um desses. A comunidade que se une em torno desses filmes se dedica a eles porque entende que há algo de especial ali, que os chavões e vícios de linguagem deles foram estabelecidos por alguma razão, que o cinema de gênero pode comunicar-se com o núcleo mais profundo do fluxo cultural da humanidade sem precisar negar o seu gênero para isso. É uma questão de coração, muito mais do que de racionalidade, e Lisa Frankenstein não coloca o seu coração para jogo.
A exceção, e veja só que interessante… é Cole Sprouse. Ele constrói uma Criatura que retém algo da ternura inocente que Boris Karloff emprestou ao personagem nos filmes clássicos da Universal, mas que também se posiciona como um desafio físico e intelectual para o ator - como se mover como um morto que acabou de ser reanimado, e como brincar com a própria imagem de galãzinho teen sem parecer estar desdenhando dela, ou do público feminino que se apega a ela? Bom, vai ver sete temporadas em Riverdale (um clássico cult esperando para acontecer, se você nos perguntar) tenham lhe preparado bem, porque Sprouse segura essas contradições em sua performance brilhantemente.
Em suma: ele sabe onde está, e gosta muito de estar aqui. É uma combinação poderosa que, infelizmente, escapa inteiramente a Lisa Frankenstein.
Ano: 2024
País: EUA
Duração: 101 min
Direção: Zelda Williams
Roteiro: Diablo Cody
Elenco: Kathryn Newton, Carla Gugino, Cole Sprouse