Cena de Atropia (Reprodução)

Créditos da imagem: Cena de Atropia (Reprodução)

Filmes

Crítica

Atropia seduz com bom humor só para aumentar a potência da sua denúncia

Vencedor do prêmio principal em Sundance, filme com Alia Shawkat faz boa enganação

Omelete
3 min de leitura
03.02.2025, às 09H47.

Hailey Gates sabe muito bem o que está fazendo. A diretora e roteirista de Atropia, que venceu o Prêmio do Júri na competição principal do Festival de Sundance 2025, estrutura o seu longa de estreia como paródia aberta do militarismo estadunidense, abusando de clipes de arquivo (George W. Bush é quase um personagem do filme) e explorando a estética machona decadente que marcou certos cantos da cultura ianque no início dos anos 2000 na esperança de retirar risadas fáceis do público - só para puxar o tapete embaixo dos nossos pés, com delicadeza quase inacreditável, ao revelar que, na verdade, tudo nessa paródia poderia muito bem acontecer de verdade (e provavelmente aconteceu).

Na trama, Fayrouz (Alia Shawkat, de Arrested Development) é uma atriz singularmente dedicada a um projeto curioso: ela é uma das muitas profissionais contratadas pelo exército dos EUA para interpretar moradores de um vilarejo construído no meio do deserto californiano, que simula um país do Oriente Médio e serve de campo de treinamento para soldados antes de serem enviados para a Guerra do Iraque, no início do milênio. A encenação por lá, com direito a balas falsas, bolsas de sangue e visitas de atores hollywoodianos (Atropia lança mão de uma participação especial genuinamente surpreendente no seu primeiro ato), é obviamente uma farsa - mas isso não serve de muito conforto, uma vez que se entende o destino dos rapazes de uniforme que passam por lá.

O humor no roteiro de Gates, por vezes, é formulaico. Os sonhos de sucesso de Fayrouz movimentam a primeira parte da trama, e a disposição que ela demonstra em passar seus colegas para trás para ter seu grande momento de brilho soletram uma sátira hollywoodiana cansada, mas Atropia aos poucos vai se desvencilhando dessa e de outras narrativas cômicas arquetipicamente estadunidenses - as partes de si mesmos que os americanos se sentem confortáveis em parodiar - para confrontar a incongruência desumanizante do próprio empreendimento da “guerra ao terror” em seu auge, lá no início dos anos 2000. Nunca se falou tanto em “missão cumprida”, em “liberação dos povos”, em excepcionalismo ocidental, quanto nessa época, e Atropia está em seu mais afiado quando olha criticamente para essas narrativas.

Quem também ajuda a operar essa virada retórica é Alia Shawkat. O charme meio rígido da atriz, que sempre foi ótima em permanecer crível mesmo diante das situações cômicas mais absurdas, garante que o filme continue conectado à sua verdade dramática até nas horas em que aposta em uma estetização mais frontal. Muito assistida por suas montadoras Sophie Corra (Physical) e Madeleine Gavin (Agora Estamos Sozinhos), Hailey Gates se mostra uma cineasta dada à mistura de formatos e registros, por vezes lançando mão de uma câmera lenta ultra-dramática, ou entrecortando filmagens cruas de campos de guerra contemporâneos no meio de suas encenações - sempre uma estratégia de choque, uma forma de sublinhar a colisão entre o surreal e o real em sua história.

É essa a tal puxada de tapete que eleva Atropia para além da eficácia do seu humor. Ao minar risadas do desajuste cruel entre o discurso e as ações de toda uma instituição (talvez até de um país, de um hemisfério, de uma sociedade), e por fim nos revelar que as coisas não mudaram e nem devem mudar tão cedo, Gates fez um filme singularmente contemporâneo - em sua desilusão, em sua aspereza, em seu desconforto. Rir do estado das coisas é uma resignação, parece nos dizer Atropia, e essa resignação custa vidas. Mas é também a única escolha que temos.

Nota do Crítico
Ótimo
Atropia
Atropia

Ano: 2025

País: EUA

Duração: 104 min

Direção: Hailey Gates

Roteiro: Hailey Gates

Elenco: Chloe East, Chloë Sevigny, Jane Levy, Alia Shawkat, Callum Turner

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