Em alguns momentos, 2000 Meters to Andriivka é um filme de ação incrivelmente intenso. Diversas sequências do documentário de Mstyslav Chernov – uma “continuação” do seu vencedor do Oscar, 20 Dias em Mariupol – são filmadas na perspectiva de primeira pessoa através de câmeras nos capacetes dos soldados ucrânianos. As armas sobem, miram e atiram como se estivessem em nossas mãos. O inimigo surge à frente. O alvo é derrubado.
Essas cenas geram um conflito. Conforme inimigos são avistados, irmãos caem baleados e explosões povoam a tela, prendemos a respiração e sentimos o coração acelerar. Poucas vezes um filme conseguiu nos colocar tão próximos da ação. Call of Duty parece brincadeira. A questão, contudo, é se este deveria ser o efeito de um filme sobre o contra-ataque da Ucrânia contra a Rússia que serve como sucessor espiritual de um dos mais brutais retratos das vítimas, em especial civis, desse mesmo conflito. Chernov parece perceber isso, e faz seu filme caminhar em direção a um grande anticlímax que busca desfazer a energia gerada até ali.
Esta vem de testemunharmos os avanços das forças ucranianas até seu destino: Andriivka. Todos os campos ao redor desta vila estão repletos de bombas e minas, e a única forma de chegar ao local – um ponto-chave na rota de abastecimento russa – é por uma floresta formada por dois mil metros de árvores dispostas em linha reta. A comparação com jogos de tiro lineares mais uma vez se faz quase irresistível. Pouco a pouco, esses homens andam em direção a libertação de… bom, esse é um dos pontos. Andriivka, Chernov mostra, foi reduzida a meia dúzia de casas que mal conseguem ficar de pé. Não há mais ninguém lá. O que, exatamente, eles estão liberando?
Jornalista que acompanhou de perto o início da invasão russa, Chernov reflete sobre essas questões. O filme divide seu tempo entre as câmeras dos soldados em ação e a câmera do diretor, que pouco a pouco conhece os homens envolvidos na missão e conversa com eles sobre o que está acontecendo. Ele eventualmente conclui que o que está sendo liberado é uma palavra. O nome do local. Alguns soldados dizem que aquilo serve para dar à Ucrânia a chance de reconstruir, mas outros parecem incertos sobre o valor dessas ruínas. Quantas mortes aquelas paredes merecem?
O cineasta, por sua vez, parece dividido. Como ucraniano, é natural que ele queira destacar os feitos de seus compatriotas, e como jornalista, ele parece entender o perigo de glorificar atos de guerra, ainda que eles sejam, aos olhos de muitos, justificáveis.
Isso não quer dizer que a guerra não seja, de uma forma bem prática, glorificada. Como dito acima, é difícil não ficar na beira da poltrona enquanto vemos cenas tipicamente exclusivas a videogames acontecendo com pessoas reais, num local real. Por mais brutal, aterrorizante e triste que seja tudo isso, 2000 Meters to Andriivka se revela como uma grande evidência da máxima de François Truffaut sobre a impossibilidade de se fazer um filme anti-guerra que mostre a guerra. Através das lentes de uma câmera, é fácil deixar tudo – inclusive a realidade – cinematográfico. Chernov entende isso, e uma parte dele claramente quer comunicar isso colocando em tela “atos heróicos”.
Conforme 2000 Meters to Andriivka se aproxima da cidade titular, onde o líder do batalhão deve erguer uma bandeira da Ucrânia, Chernov intensifica o outro lado do filme. Entrevistas com soldados revelam suas vidas roubadas e tipicamente terminam com o diretor anunciando que, cinco meses depois daquela interação, o entrevistado morreria em outra batalha. Corpos se amontoam. Funerais são realizados. Na sequência mais intensa do filme, um soldado russo é capturado e questionado: “por que vocês vieram pra cá?”. Desesperado, ele admite: “eu não sei.”
A falta de respostas passa a ser a resposta. Andriivka vale mesmo aquilo tudo? Qual é o destino do contra-ataque ucraniano? Seria mais sábio ceder as terras, ou isso é deixar o mal vencer? O filme não resolve todas as suas tensões, especialmente a gerada pela natureza espetacular de suas imagens e a gravidade dos seus acontecimentos, mas esse contraste ainda é poderoso e memorável.
2000 Meters to Andriivka termina com a bandeira hasteada, mas a imagem – que deveria ser de glória e triunfo – é tão vazia quanto a cidade fantasma na qual ela acontece. Se isso não for suficiente para dar ao filme o ar de desolação, então as cartas de texto no fim, revelando que os russos retomaram Andriivka meses depois, certamente farão isso. Valeu a pena?
Crítica escrita em 3 de fevereiro de 2025 como parte da cobertura do Festival de Sundance, onde 2000 Meters to Andriivka ganhou o prêmio de melhor direção na mostra de cinema global - documentários. O filme ainda não tem previsão de estreia para o Brasil.
Ano: 2025
País: Ucrânia
Classificação: 16 anos
Duração: 1h47 min
Direção: Mstyslav Chernov