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Star Wars: Visions traz verdade amarga para o nerd: cânone é superestimado

Com liberdade aparentemente confusa, antologia reconecta a saga com sua essência

22.09.2021, às 11H59.

Dá pra definir nerdice de muitas formas. Com o passar das décadas, porém, à medida em que todo um mercado se desenvolveu ao redor da cultura nerd, cada vez mais a definição principal se resume a: nerdice é uma experiência de especialização pelo consumo.

Star Wars foi decisivo para esse movimento, à época do filme de 1977, desde o momento em que George Lucas definiu com a Fox em contrato que todo controle e rendimento com licenciamentos da marca seriam seus. Ao incentivar as criações paralelas - nos quadrinhos, nos romances, nos guias, nos brinquedos com fichas de descrição - Lucas autorizou que outras obras preenchessem as lacunas narrativas de um universo cujo apelo essencial era o mistério. Ou seja, para ter a experiência mais satisfatória de Star Wars, segundo um raciocínio completista, seria crucial conhecer também toda a literatura de apoio que vai além dos filmes. 

Por que a ideia de cânone é tão importante nesse contexto? Ora, porque é o selo de autenticidade que autoriza e legitima o consumo: se um romance é considerado parte integral da mitologia de uma saga, sua leitura se torna indispensável, ao contrário, por exemplo, de uma fanfic de Star Trek ou de Harry Potter que circula em fóruns mas não tem relação comercial com as franquias em si. É possível defender que a comunidade de fanfics é uma expressão mais anárquica da nerdice, e portanto mais romântica, mas isso é assunto para outro texto.

Quando a Disney comprou a Lucasfilm em 2012, uma das decisões da companhia, crucial do ponto de vista da especialização pelo consumo, foi estabelecer com todas as letras o que seria Cânone (ou seja, as narrativas que integram a continuidade de Star Wars) e o que permaneceria no chamado Universo Expandido (as obras de ficção que, mesmo licenciadas, não afetam a saga oficial). A notícia foi recebida com festa pelos fãs porque, para além de organizar a infinidade de narrativas de Star Wars, isso sinalizava que a Disney se importava o suficiente com a saga e estava delimitando exatamente o que pode e o que não pode acontecer nas suas histórias - como um supercontrole narrativo que teoricamente preservaria a integridade da mitologia.

Aqui se usa “teoricamente” porque, dez anos depois, o que temos no cânone de Star Wars? À exceção das séries animadas criadas por Dave Filoni, que legaram personagens hoje reincidentes na franquia, como Ahsoka Tano, os principais produtos da saga nesta última década reeditaram personagens, situações e dinâmicas consagradas, seja na nova geração criada por J.J. Abrams no cinema, seja nas séries do Disney+. Olhando em retrospecto, hoje é fácil diagnosticar essa tendência, mas em 2012 talvez não fosse tanto: ao invés de criar um ambiente fértil de histórias, fazer do cânone uma estufa, por assim dizer, o supercontrole da Disney fez o que o dinheiro obviamente exige: diminuir os riscos e maximizar os ganhos, entregando o que o consumidor já provou querer.

Tudo isso para chegarmos a Star Wars: Visions. Antes de mais nada, é com modéstia que a antologia chega ao Disney+, quase com embaraço: todos os episódios são colocados no catálogo de uma só vez, e chegam sem aquela habitual blitz de marketing que já oferece toda uma linha de brinquedos nas lojas para acompanhar a novidade. É a primeira vez na era Disney que um produto “de vitrine” de Star Wars, audiovisual, não faz parte do cânone oficial, e o resultado pode desnortear quem espera padronização: cada episódio tem seu traço, cujos parentescos mais imediatos são com outras animações japonesas e não com Star Wars, e os conceitos apresentados não são uniformes: há explicações variadas para as cores dos sabres, para o poder dos cristais kyber, para a manifestação da Força e a criação de um jedi, e aquela história de que os sith sempre chegam em dupla também deixa de valer.

Quando os produtores de Star Wars dizem que Visions foi feito “de fã para fã” isso é obviamente redundante, primeiro porque o conceito de “fã de Star Wars” se diluiu em décadas de hegemonia da saga no imaginário nerd, e segundo porque, desde os anos 80, os criadores envolvidos com o velho universo expandido sempre se apresentavam como reverenciadores da criação de George Lucas. Talvez essa declaração venha, do ponto de vista corporativo, para tentar embalar Visions dentro da lógica do consumo: se essa antologia é “de fã para fã”, ela ganha um selo de autenticidade também, semicanônico.

Isso não impede que Visions seja um objeto estranho na vitrine, ainda mais se comparado com seu similar no mercado, a série animada de antologia What If...?, do Marvel Studios. Originalmente, o conceito de “imagine se?” se presta a materializar as ideias mais malucas, mas a primeira temporada da antologia em essência redistribui papéis e dinâmicas de personagens segundo seu perfil no MCU - ou seja, ao invés de expandir possibilidades, a Disney institui um regime de liberdade provisória em que é possível pirar, sim, com as histórias, desde que elas se mantenham no terreno do testado e conhecido.

Tentar radiografar em que pontos da cronologia os episódios de Visions se passam é receita para frustração. Há versões alternativas de personagens clássicos, e um dos episódios, inclusive (não vou dizer qual, para manter a surpresa), oferece uma reinterpretação da tragédia de Anakin de uma forma inesperada. Há muita coisa familiar para ser observada na antologia - uns quatro ou cinco episódios usam a gag do “estou com um mal pressentimento sobre isso” - mas o principal de Visions, pelo menos para mim, é perceber como este Star Wars japonês preserva certas essências da saga ao deslocá-las. Na verdade, algumas dessas “verdades” de Star Wars ficam mais claras na antologia justamente porque são deslocadas, evidenciadas sob uma luz diferente.

Um exemplo vem do episódio “The Village Bride”, em que uma padawan defende habitantes de uma vila que demonstram com a natureza do seu planeta uma sinergia muito próxima do zen-budismo. Quando Lucas bebeu na fonte das histórias de samurai do Japão feudal para criar a mitologia jedi, ele trouxe consigo para o Ocidente tanto elementos do militarismo (o jedi e o sith, como os samurais, estão sempre condicionados a um mestre, a uma hierarquia) quanto da filosofia zen (aquela história dos jedi serem antes de tudo uma força de paz, como monges). Se com o passar dos filmes o militarismo prevaleceu - afinal, Star Wars prosperou na cultura americana, e a trilogia dos prelúdios em essência é um tragédia sobre como os jedi se tornam instrumentos de guerra - Visions agora vem nos lembrar de que o aspecto monástico budista da Força já foi central na criação desses personagens.  

Ou seja, ao invés de “deturpar” Star Wars com sua inconsistência e sua confusão de conceitos, talvez o que Visions opere seja, ao contrário, por meio da memória afetiva dos criadores, um reencontro com o que é originário na saga. Um dos melhores episódios, “T0-B1”, que homenageia Osamu Tezuka, é um dos mais soltos do ponto de vista da mitologia, porque sua releitura de Astro Boy sugere que mesmo um droide pode ser jedi. Ao mesmo tempo, assistir a esse retorno árido a Tatooine nos relembra como a infância isolada num deserto infértil moldou não apenas Luke Skywalker como também Anakin. Esse episódio de Visions praticamente faz de Tatooine um personagem em si, com seus dramas de irrigação e sobrevivência transformados em elemento de impacto narrativo. Nesse caso, “T0-B1” relembra o quanto de Duna há em Star Wars, por mais que George Lucas tenha depois deslocado a trama da sua ópera espacial para as viagens pela Galáxia à velocidade da luz.

Pela própria natureza desses curtas, contados em 20 minutos com começo e fim, Star Wars: Visions não vai mudar o panorama da saga, muito menos influenciar o preço das ações da Disney na Bolsa de Nova York. Em alguma medida, porém, a antologia conseguiu abrir uma senda de reflexão sobre a cultura nerd em 2021, sobre a realidade em que ela se encontra, e o tipo de propriedade criativa que ela pode reivindicar como sua: talvez a ideia de cânone, afinal, seja superestimada, porque hoje diz mais respeito ao business do que ao fandom em si.