Charlie Cale está à deriva - para Poker Face funcionar, ela precisa estar. Mas o que estar à deriva o tempo todo, não só sem raízes geográficas mas também sem conexões humanas duradouras, faz com alguém? Natasha Lyonne sem dúvida parece interessada nessa questão, que dá carne para a sua performance na série, especialmente numa segunda temporada que vai esticando a boa vontade da moderninha Poker Face com o prazer simples e antiquado em que seu sucesso é baseado: o status quo essencialmente imutável do procedural televisivo estadunidense, em que “casos da semana” se enfileiram sem transformar demais a situação dos protagonistas. Toda evolução é gradual, toda mudança é calculada e operada em questão de anos, e não episódios.
Talvez por isso pareça uma espécie de traição quando Poker Face escolhe virar a mesa de sua própria premissa não uma, mas duas vezes num espaço de 12 capítulos. A primeira vem logo no começo da temporada, no divertido episódio “Whack-a-Mole” (2x03), quando a perseguição de Charlie pela máfia, agora liderada por Beatrix (Rhea Perlman), chega ao fim com um confronto explosivo dentro de um jatinho particular. Daí em diante, a série propõe a si mesma e à sua protagonista uma busca por propósito, tentando entender se os espaços pequenos dos EUA, nos quais Charlie precisou se esconder por tanto tempo, são mesmo os ideais para ela e sua poderosa antena anti-mentiras. É uma exploração naturalmente irregular, mas inegável também que ela seja narrativamente legítima.
Nesse período, Poker Face se dá melhor nas ocasiões em que se deixa delirar um pouquinho: “The Taste of Human Blood” (2x04) dá ao diretor Lucky McKee a oportunidade de fazer viagens lisérgicas e à convidada Gaby Hoffman a chance de caminhar habilmente entre o comicamente patético e o dramaticamente convincente; “Sloppy Joseph” (2x06) faz uma inversão deliciosa de riscos e consequências ao colocar Charlie para lidar com crianças que mentem tanto quanto os adultos ao seu redor; e “The Sleazy Georgian” (2x08) faz o melhor dos carismas consideráveis de Melanie Lynskey e John Cho, além de contar com as reviravoltas mais genuinamente chocantes da temporada. Mas essas são qualidades pontuais, e Poker Face não está satisfeita em ter pontos altos.
Daí que o showrunner Tony Tost (The Terror), assumindo posição que foi das irmãs Nora & Lila Zuckerman na primeira temporada, constrói as idas e vindas de Charlie pelo interior dos EUA para culminar em um retorno a Nova York, numa estadia final de quatro episódios que força a personagem e o público a considerar a possibilidade de um novo lar, e com ele um novo conforto, uma nova familiaridade. Não por acaso, nesse período a construção da personagem central vai ficando mais forte, e Poker Face consegue adicionar floreios curiosos aos elementos que fazem de Charlie uma boa detetive e uma boa protagonista: é claro que ela tem o seu detector de mentiras embutido, mas a série fortalece aqui algo de vulnerável na sua forma de se aproximar das pessoas, na curiosidade e firmeza moral que ela demonstra ao conhecê-las para além de suas “bullshits”.
Há fundação sólida aqui, argumenta Poker Face, para se construir mais uma vez uma série de TV que poderíamos ficar assistindo por anos a fio… exceto, é claro, pelo fato que Poker Face não quer realmente ser essa série. Por mais que enfeitice o público com essa ideia da televisão de conforto, a produção herda de Lyonne uma inquietude que é intrínseca às explorações emocionais que ela quer fazer. Essa é uma história sobre o peso cobrado pela vida “leve” dos descompromissados, sobre como todos buscamos laços e como a velocidade do mundo - e a desonestidade das pessoas - os tornam impossíveis de fortalecer. Em entrevista ao Omelete no começo da segunda temporada, Lyonne citou que não se achava, e nem achava Charlie, particularmente “durona”. Ambas só fingem que são, ou aprenderam a construir uma fachada que convence as pessoas de que são.
Essa é a fachada que desmorona nos minutos finais de “The End of the Road”, episódio de fechamento dessa temporada cheia de buscas de Poker Face. Lyonne interpreta o momento com maestria, mas há algo de amargo que é difícil de espantar conforme Charlie se encaminha para mais uma fuga, mais uma estrada sem perspectiva de fim. Tentando fugir da inércia do procedural que se repete para sempre, a série parece encontrar um tipo diferente de inércia, mais profunda e mais incômoda. Tudo muda tantas vezes, e tão rápido, no mundo de Poker Face… mas Charlie continua correndo, continua sofrendo, continua à deriva. Parece, enfim, que nada mudou.