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Séries e TV

Crítica

Final de La Casa de Papel é emocional, político e eletrizante

Saturação de popularidade não impediu Alex Pina de produzir um dos encerramentos mais bem planejados deste ano

04.12.2021, às 12H46.
Atualizada em 04.12.2021, ÀS 14H17

A trajetória de La Casa de Papel na TV sempre esteve – para os olhares mais rígidos – à sombra de uma verdade inconveniente: ela foi esticada por causa de audiência. Essa informação, que para a maioria do público não é relevante, para quem costuma levar em consideração as bases de uma decisão criativa pode ser decisiva na hora de julgar os resultados. A próxima que passará por isso será Round 6. Ambas têm em comum uma ideia que nasceu com limitações dentro da própria estrutura dramatúrgica, que não são necessariamente incapazes de um atalho, mas que dependem de muito planejamento.

La Casa de Papel era uma minissérie que contava a história de um inteligentíssimo assalto à Casa da Moeda espanhola. Para continuar ela tinha duas opções: perseguir os personagens em meio às vidas deles ou ficar fazendo um novo assalto a cada temporada, a exemplo do que Prison Break fez com a ideia de uma fuga inteligente da prisão se tornando recorrente a cada ano. Contudo, desde o primeiro episódio ficou claro que La Casa de Papel veio pronta para afastar qualquer impressão de que “aquela não era uma série como estávamos acostumados a ver”, ou seja, ela veio toda produzida dentro dos padrões americanos de roteiro, direção e trilha. Isso fez o público se sentir “familiarizado” com o que estava vendo e o sucesso foi inevitável.

Sem perder totalmente sua identidade (presente principalmente no texto quase melodramático, típico das produções espanholas), a série demonstrou uma grande capacidade de organização, justamente porque foi pensada como um todo. Na hora da continuação, o criador Alex Pina acertou ao propor que um único novo assalto acontecesse e fosse dividido em várias partes. Assim, a invasão ao Banco da Espanha foi assustadoramente planejada para se manter por 26 episódios, divididos em duas partes de 8 episódios e duas partes de 5. A solução foi pensar a história inteira, com todos os detalhes e filmar de uma vez. Assim, ficou a sensação de uma série com muitas temporadas, mas uma única flexibilização de enredo.

Mesmo assim, ela não escapou do cansaço. A parte 3 arrumava a história, mas para chegar até o final havia um longo caminho. Com uma produção comprometida com a ação e o fator surpresa, seria muito difícil garantir a harmonia dos elementos por muito tempo. A parte 4 e o volume 1 da parte 5 tiveram grandes momentos, mas foram excessivamente focados numa guerra bélica, desequilibrando a balança entre ação e intelectualidade, que sempre foram a marca da série. O sucesso de alguns personagens em detrimento de outros também atrapalhou um pouco o desenvolvimento geral. Porém, a produção nunca saiu do controle.

Lazarillos

Uma das grandes controvérsias em torno de La Casa de Papel foi a forma como ela transformou em heróis os criminosos. Em alguns momentos o Professor (Alvaro Morte) é chamado de Robin Hood, quando, na verdade, ele nunca roubou para dar aos pobres. Contudo, essa era só mais uma forma de justificar essa ótica romântica, complementada por assaltantes que nunca matam reféns, e têm relações sentimentais entre si. Alex Pina, inclusive, só fazia uma autoridade ser “gostável” quando ela passava para o lado dos bandidos. Era um maniqueísmo inverso assumido e auto celebrado. Com a parte final, ele escancarou essa premissa e ainda provocou o governo espanhol.

Em um dos ótimos diálogos dessa parte final, Lisboa (Itziar Ituño) e o Professor tentam convencer o Coronel Tamayo (Fernando Cayo) a aceitar os termos do plano, caso contrário uma grande crise econômica afetará a Espanha. Lisboa, então, cita Lazarillo de Tormes, de autor anônimo, um símbolo do gênero picaresco espanhol, conhecido pela figura de um “heroi malandro”, que ascende dentro de uma sociedade corrupta por conta de sua inteligência. “Que outro país poderia ter uma reserva de latão nos cofres e ainda ser considerada uma das principais economias do mundo?”, dispara ela.

O choque de Tamayo diante dessas palavras alcança a audiência. Pela primeira vez fica muito clara – sem brecha para outra interpretação – a intenção de Pina ao criar todo aquele universo tão socialmente transgressor: aquela é quase uma revolução francesa, um recado da base da pirâmide para o topo: nós somos capazes de aniquilar esse sistema e humilhar vocês todos no processo. Com a “guerra” encerrada, a série volta para a esperteza de seu enredo, que ainda é cheio de “licenças”, mas calculadas para serem perdoadas, tamanha a força dramática que impõem. E é isso que torna esses episódios finais um espetáculo de narrativa.

A Casa de Família

As viradas da trama são incontáveis, mas grande parte da expectativa do público estava em como - e se - os personagens chegariam ao fim dessa empreitada. Em temporadas anteriores, a morte nunca foi um receio dos roteiristas, mas também nunca foi um recurso banalizado. Nessa parte final quase tudo com relação aos personagens funciona, com exceção da presença apática do casal Estocolmo (Ester Acebo) e Denver (Jaime Lorente), e da estranha ausência de Arturo (Enrique Arce). O ator deu várias declarações sobre o quão insatisfeito estava com a cena em que o personagem estupra uma mulher dopada e isso parece ter se refletido nos bastidores.

Os vários flashbacks envolvendo a família do Professor finalmente convergiram para a trama principal e também situaram o espectador dentro de uma realidade que a série vinha ignorando até então: às vezes é só ego. Há uma preocupação notória em estabelecer que as mortes são para aqueles em que a vida pós-assalto jamais seria possível sem a adrenalina da contrariedade. Mas, a figura do Professor paira sobre isso até o ponto em que, muito espertamente, o prazer do crime é incorporado – literalmente – ao seu DNA, abrindo o caminho para uma oportuna desconstrução. A série nunca foi sobre “se ele ganha”, porque, por essência maniqueísta (mesmo que inversa), sabemos que sim. Mas, sobre quem ele perde.

E assim, com uma direção caprichada, atores em plena devoção aos personagens e uma trilha sonora de desarmar nossas defesas, o final de La Casa de Papel segue o que a constituiu como fenômeno e consegue o feito de cobrir quase todas as frentes. É um espetáculo visual e dramatúrgico, com o bônus de ainda ser divertido. A ideia de que o crime compensa permanece, mas talvez a questão não seja mais “o que acontece com os criminosos” e sim “quem são eles?”.

Nota do Crítico
Excelente!