O ESPECIAL TELA QUENTE é uma reportagem do Omelete sobre a história da representação do sexo no cinema, os debates atuais em torno dela, e o impacto na indústria do audiovisual. Composto de seis matérias jornalísticas apoiadas em pesquisa e entrevistas com diversos especialistas - psicólogos, críticos, cineastas, coordenadores ed intimidade e mais -, o especial será postado em capítulos entre os dias 2 e 6 de setembro (ou 6/9, quando é comemorado o Dia do Sexo).
O thriller erótico morreu. Vida longa ao thriller erótico.
Essa tem sido, basicamente, a gangorra retórica pela qual a cultura pop tem passado nos últimos anos, diante da percepção crítica de que um dos subgêneros mais populares de décadas passadas (responsável por hits de bilheteria lúridos como Instinto Selvagem, Corpo em Evidência e Atração Fatal) se esvaziou de significado - e de apelo - no novo milênio. De quando em quando, um ou outro título tenta reviver esse cinema de ensejo abertamente vulgar (Jogo Justo, Águas Profundas e Babygirl foram, todos, saudados como retornos do thriller erótico, apesar de se enveredarem também por tangentes de gênero diferentes), mas o consenso geral é que Hollywood tem falhado em atiçar o público como fazia antigamente.
Harris Dickinson e Nicole Kidman em Babygirl (Reprodução)
Ou será que é o público que não quer mais ser atiçado? Em outubro de 2023, uma pesquisa da Universidade da Califórnia (EUA) chegou à conclusão que a geração Z (formada por adolescentes e jovens até os 27 anos) quer ver menos sexo no cinema. Quer dizer, é mais ou menos isso: o que 51.5% dos entrevistados da pesquisa disseram, na verdade, é que prefeririam ver mais narrativas sobre amizade e relacionamentos platônicos do que sobre sexo. Uma aspa reproduzida pela Variety, atribuída a um rapaz de 17 anos ouvido no estudo, soletra bem o espírito da coisa: “Eu não gosto que, toda vez que um personagem masculino e uma personagem feminina são vistos juntos na tela, os estúdios sentem a necessidade de fazê-los se apaixonarem um pelo outro”.
Mas você sabe como é a internet… “Geração-Z quer menos sexo na tela” é uma síntese mais atraente do que “Geração-Z prefere amizade a romance no cinema”. E, de uma forma ou de outra, essa queixa dos jovens da pesquisa se alinhou a uma observação empírica que muita gente já tinha feito: as redes sociais estão cheias de reclamações sobre “cenas de sexo desnecessárias” em todo tipo de mídia, de filmes e séries a quadrinhos e videogames. O tema virou um daqueles que são discutidos rotativamente, de tempos em tempos, em qualquer que seja a atual plataforma preferida do que antes se chamava de “tuiteiro médio”. No Brasil, é claro, a percepção de que essa revolta vem do público Z até gerou um apelido engraçadinho, “geração D de Damares”, em referência a ex-ministra conservadora do governo Jair Bolsonaro.
“Quer saber? Eu não estou totalmente convencido de que isso [o desgosto da geração-Z por cenas de sexo] seja verdade!”, arrisca Matt Baume, youtuber e autor que baseia sua presença online em uma pesquisa profunda sobre sexualidade na mídia do século XX. “Eu acho que talvez seja um pedaço de informação interessante e contraintuitiva em que as pessoas se agarraram. E a natureza desse tipo de coisa é que, conforme continuamos a repetindo, ela vai se tornando mais importante e verdadeira do que realmente é”.
Assim como todos os outros especialistas que o Omelete entrevistou para este especial, no entanto, Baume alia este ceticismo a uma análise temerosa das movimentações políticas e culturais dos últimos anos: “Acabamos de ter uma eleição com resultados bem conservadores aqui nos EUA [com a vitória Donald Trump na corrida presidencial], e isso está acontecendo também no mundo todo. Acho que pode ser um sinal cultural de que as pessoas estão começando a reagir mal à diversidade que tínhamos visto nos últimos anos na mídia. Em momentos de raiva, as pessoas procuram alguém para culpar - e o sexo é um bode expiatório conveniente”.
A psicóloga Carolina Freitas de Mendonça (CRP 19/004533), que foca seu atendimento no público adolescente, traz a retórica para o contexto brasileiro: “O debate moral em torno do sexo, como algo ruim e pejorativo, é uma coisa que tomou o Brasil nos últimos anos - assim como a perseguição às pessoas LGBTQIAPN+. Isso aumentou muito por conta de configurações políticas nacionais e regionais”.
Tanto Freitas quanto Isabel Wittmann, crítica do Feito Por Elas e doutora em antropologia com pesquisa sobre cinema, gênero e sexualidade, frisam que as transformações da forma de consumir cinema na era do streaming também mudaram a relação que temos com a cena de sexo. “Tenho a impressão que o consumo de filme no streaming, e não no cinema, dita um público mais distraído em relação àquilo que está assistindo. Elas não assistem pela experiência da linguagem audiovisual, mas pela historinha, pela trama”, comenta Wittmann. “E, nesses parâmetros, tudo que é colocado em termos de construção de personagem, de uma maneira mais lenta, ou com elementos que não necessariamente são a trama central do filme, fica marcado com o carimbo de ‘supérfluo’”.
João Pedro Mariano e Richardo Teodoro em cena de Baby (Reprodução)
Mas Freitas cita exemplos como o Universo Cinematográfico Marvel e a franquia Star Wars para apontar que a culpa não está toda desse lado da tela: “Não vem só do público, mas das próprias produções. Se você olha para a Marvel, para as outras franquias da Disney, a sexualidade não faz mais parte delas. Nas primeiras trilogias de Star Wars havia a questão da atração, do romance, enfim, da sexualidade dos personagens… enquanto nesta última, já com a Disney, tivemos a oportunidade perdida de incluir um casal LGBTQIAPN+ entre os protagonistas”.
“E porque não incluir sexualidade nas histórias? Acho que é uma questão corporativa mesmo”, completa a psicóloga. “Eles querem criar esses corpos em tela que são utilitários, que não esbarram com a sexualidade porque a sexualidade é a experiência pela experiência. Tirando a questão da reprodução - e acho que essa é a última razão pela qual as pessoas fazem sexo hoje em dia -, ela é só para sentir prazer, e o prazer não tem utilidade para além do próprio sujeito”.
Como já está abundantemente claro, essa não é uma questão que pode ser resumida em uma manchete fácil. “A relação desses jovens com a sexualidade é muito diferente da nossa”, aponta Wittmann. “Vemos, por exemplo, que existe uma aceitação muito maior de expressões múltiplas da sexualidade, até de práticas sexuais que não eram bem vistas no passado… e, ao mesmo tempo, também vemos pesquisas dizendo que essa geração é a que menos faz sexo na história. Me preocupa um pouco o puritanismo que pode estar envolvido nisso [na rejeição de retratos da sexualidade no cinema], mas por outro lado não dá para negar que, na vida real, esses jovens praticam uma acolhida muito maior a expressões de sexualidade que vão além da monogamia e da heteronormatividade”.
É um refrão parecido com o cantado pelo cineasta Marcelo Caetano, responsável por filmes sexualmente carregados como Corpo Elétrico e Baby: “A gente está lidando, hoje em dia, com pessoas que cada vez mais produzem imagens sensuais de si nas redes sociais, que fazem a sexualização do próprio corpo. Além disso, temos uma relação muito mais positiva com corpos diferentes, gordos, PCDs. Avançamos muito em uma série de discussões na seara da sexualidade, então me incomoda essa tentativa de aprisionar a discussão na coisa de querer ou não a cena de sexo”.
Por outro lado, assim como o ato de fazer sexo, o ato de fimar sexo é uma prática mais velha do que andar pra frente…