Em O Reformatório Nickel – indicado a Melhor Filme e Melhor Roteiro Adaptado no Oscar 2025 que finalmente foi lançado no Brasil – o diretor RaMell Ross quer combater, segundo suas palavras, a ditadura da imagem. Professor universitário e documentarista, Ross tem comentado sobre o distanciamento de ver, digamos, uma fotografia. Ela impõe verdades estáticas sobre o que está enquadrado ali. Um menino como Elwood (Ethan Herisse) pode ser fotografado sorrindo e, se o julgássemos apenas pelo registro, jamais saberíamos os horrores que ele enfrentou.
Teoricamente, filmes são uma resposta para isso. A imagem em movimento. O mundo dinâmico. Mas filmes ainda têm limites, e como fotografias, eles nos colocam do lado oposto da câmera. Se, por um lado, isso nos transporta para dentro de outros mundos, peles e histórias, também há o efeito de distanciar-nos disso tudo. Nós somos os observadores. Por mais que o cinema abra janelas para experiências inéditas, ele também mantém tudo aquilo dentro de uma tela, e mesmo quando somos desafiados com as mais urgentes narrativas. Vemos desgraças, guerras e crimes e processamos tudo aquilo como conteúdo; existe na tela. Deixa de existir fora dela.
Adaptando o romance homônimo de Colson Whitehead, Ross quer impedir que o racismo e a violência que marcaram e ainda marcam os Estados Unidos, para não dizer todo o mundo, sejam enterrados como os corpos e artefatos descobertos nas terras do reformatório Nickel, para onde Elwood e Trevor (Brandon Wilson) são mandados nos anos 1960, e onde experimentam uma versão condensada da experiência do preto numa sociedade insistente em desumaniza-lo.
A mais chamativa das cartadas de Ross é o uso da perspectiva em primeira pessoa, uma que procura nos colocar, literalmente, na pele dos meninos. Mas, além de perpetuar os sentimentos deles, deixando-os mais palpáveis ainda que os atos mais severos de violência permaneçam implícitos – o filme mostra muito rigor para não virar uma exibição de corpos negros sofrendo –, a escolha também nos iguala aos personagens num sentido. Agora, eles também são observadores. Ou, melhor dizendo, nós todos somos testemunhas.
Amazon MGM Studios
Ainda há mais agência da parte do filme, e isso é essencial para que O Reformatório Nickel nos passe a importância de testemunhar. Não temos a escolha do que vemos, mas “nos forçar” a olhar o mundo pelos olhos dos meninos significa que não podemos escapar de sua realidade, e de sua percepção da realidade. Como eles, consideramos tudo. Ross usa a expressão “o épico banal” para descrever o cuidado de Nickel em dar tempo para uma folha seca, para o céu azul e outras ocorrências aparentemente “não cinematográficas". É uma decisão que funciona justamente porque quando algo está no centro do olhar, aquilo ganha um grau de importância. Independente de ser rotineiro, incrível ou traumático.
Nesse sentido, O Reformatório Nickel me lembra outra dissertação contra a trivialização da experiência humana: Não! Não Olhe! de Jordan Peele. A ideia de estarmos vendo espetáculos de horror e como reagimos a isso é o grande tema daquele filme, um suspense divertido e assustador sobre a dessensibilização midiática. O Reformatório Nickel não quer ser uma mídia. Chamar filmes de conteúdo nunca foi tão ofensivo quanto aqui.
Amazon MGM Studios
Além do uso da primeira pessoa, algo embelezado pela fotografia de Jomo Fray, a presença de registros, imagens de arquivos e outros elementos históricos no filme o deixa inescapável. Ross frequentemente usa, quer dentro do longa ou quer em inserções, fotos, reportagens e gravações reais que pautam O Reformatório Nickel como parte de uma história — a história ainda em curso, ainda escondida, ainda perpetuada. É até curioso que uma história sobre prestar atenção tenha sido tão ignorada pelo estúdio. A Amazon MGM mal deixou o filme em cataz nos EUA, e por mais que tenha sido lançado sem cerimônia no Brasil, direto no catálogo do Prime Video, O Reformatório Nickel em nada se assemelha a algo que você só começa e termina num app.
Na verdade, torna-se impossível olhar para o filme como algo que pode ser deixado ali na tela. A barreira é quebrada. Arrebatador, lindo, triste e revoltante, O Reformatório Nickel transborda pelos quatro cantos da imagem para tomar nosso coração e nossa atenção. Mais do que te colocar dentro do filme, Ross coloca o filme dentro de você.