É interessante vermos dois filmes que podem chegar à corrida do Oscar 2025 abordando temas tão parecidos e sintomáticos da história da América do Norte. Sugarcane, o documentário de Julian Brave NoiseCat e Emily Kassie, acompanha de perto uma investigação sobre o sistema de escolas residenciais indígenas na Columbia Britânica, uma das províncias mais importantes do Canadá, jogando luz nas atrocidades e consequências dos maus tratos sofridos por mais de três gerações de crianças enviadas para os internatos. Já Nickel Boys, a adaptação do livro homônimo de Colson Whitehead, dirigida por RaMell Ross, nos coloca dentro de uma escola-reformatório na Flórida, inspirada na real Dozier School for Boys (em tradução livre, Escola Dozier para Meninos) atualmente fechada e famosa pelo tratamento abusivo aos alunos.
Talvez a expressão “nos coloca dentro” de algo, poucas vezes tenha sido tão bem utilizada quanto em Nickel Boys. Em forma narrativa, a história de Elwood (Ethan Herisse), um jovem negro pronto para um futuro melhor, que por um erro inocente acaba levado para a Nickel Academy, é como um conjunto de lembranças. Recortes de momentos que formam uma história, sem nunca precisar realmente contar todos os detalhes. Por exemplo, do momento que ele é preso, o filme corta uma cena de outro filme, depois para ele chegando ao reformatório, depois para o dormitório, o chuveiro e o refeitório. São momentos que montam uma lembrança só, mas que não precisam necessariamente acompanhar todos esses passos. A grande diferença aqui, é que a perspectiva na qual a história é contada. Todos as cenas do Elwood jovem são mostradas em primeira pessoa. A câmera está nos olhos do protagonista e só muda quando o enxergamos tudo pela visão de seu amigo dentro da escola, Turner (Brandon Wilson).
Se logo de cara pode parecer confuso acompanhar o filme todo dessa forma, bastam poucos minutos para que a gente se acostume com a ideia de que o nosso olhar e o de Elwood serão os mesmos. Esse POV fortalece ainda mais a ideia de lembranças e pesadelo que o filme expressa tanto na montagem, quanto na própria cinematografia, toda confinada dentro de um aspecto de tela quadrada, sufocante e que nunca deixa que a gente escape daquela situação. Usando esses elementos, RaMell Ross nunca precisa de fato mostrar a violência sofrida pelos jovens na instituição, segregada entre os jovens brancos que ganham mais atenção e acomodações melhores e os negros que vivem em situação precária. Tudo é à base de sons, cortes na edição ou inserções de imagens de arquivo.
Ambientado em 1962, no meio da luta pelos direitos civis, a história vai traçando paralelos com o que acontecia fora do reformatório. Enquanto Elwood é contra a violência e um admirador de Martin Luther King Jr., Turner é menos esperançoso com a sociedade e sempre reforça que o amigo deve manter a cabeça erguida. Volta e meia encaramos o chão ou o canto da sala pelos olhos de Elwood. A violência do lado de fora, os assassinatos e perseguições também se repetem dentro da Nickel Academy. Alunos são torturados, amarrados, espancados, colocados em câmaras quentes, mortos e enterrados como indigentes no quintal da escola. As constantes imagens e relatos do homem tentando chegar à Lua são entrecortadas com momentos de morte, violência e desesperança, em um paralelo claro de como a “maior nação do mundo” vive entre suas glórias e as constantes hipocrisias como guerras e conflitos sociais internos e externos na qual se mete.
Essas lembranças de Elwood ganham ainda mais força quando o filme nos mostra o futuro, interrompendo a história no reformatório, com uma versão mais velha do personagem. Nunca vemos seu rosto, a câmera está sempre posicionada atrás de suas costas. É ali que vemos imagens reais dos reformatórios, dos objetos encontrados e escavações de centenas de corpos não reconhecidos, em sua maioria de jovens negros. RaMell Ross quebra a narrativa cinematográfica com imagens de arquivo, sempre colocando a nossa percepção - junto com a do Elwood mais velho - de que todas essas memórias são de fato reais. De que a contagem de corpos é verdadeira. De que Martin Luther King Jr. e tantos outros líderes, cheios de exposição na mídia, foram assassinados à luz do dia. E se isso aconteceria com eles, o que de diferente seria dos garotos da Nickel Academy. Até o próprio cinema e um dos maiores atores da história, Sidney Poitier, não passam despercebidos pelo diretor. Ross insere a abertura de Acorrentados, de 1958, uma história marcada pelo sacrifício do personagem negro, para salvar a liberdade do branco, no momento em que Elwood é preso. É mais do que apenas acompanhar a trajetória de Elwood. É tentar entender como a mente do garoto funciona, o que ele sente ao ver a avó (a excelente Aunjanue Ellis-Taylor), come, sofre ou se diverte.
Dessa forma, Nickel Boys parece beber da amarga delicadeza do Moonlight, de Barry Jenkins, e do cinema filosófico e de percepção de Terrence Malick, construindo um emaranhado de sentimentos para que cresçamos junto Elwood e Turner a cada nova lembrança daquele pesadelo em que viviam. Um encontro e o twist no final podem parecer mais cinematográficos do que deveriam, mas ainda assim são catárticos, doloridos e uma prova de que mesmo vivendo sob o ponto de vista daquela situação de Elwood e Turner, tudo isso ainda é parte de uma peça de arte e cinema. A realidade fica para a hora que ela chega ao fim, com o preto e branco dos créditos iguais aos dos registros reais dos reformatórios e da década de 1960.
Ano: 2024
País: EUA
Direção: RaMell Ross
Elenco: Aunjanue Ellis, Ethan Herisse, Brandon Wilson