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Mil Anos de Orações - Mostra SP 2008

Cultura e família pelos olhos de Wayne Wang

17.10.2008, às 12H00.
Atualizada em 20.11.2016, ÀS 21H00

Uma pesquisa rápida e superficial sobre Wayne Wang pode fazer a maioria torcer o nariz imediatamente, já que em 2003 ele cometeu o bobo Encontro de Amor. Mas o diretor chinês merece um olhar muito mais interessado, que vá além da comédia romântica que enterrou sua carreira mainstream.

mil anos de orações

mil anos de orações

Wang, afinal, é um ótimo diretor de atores e seu crédito é altíssimo, já que são dele os dois ótimos filmes-de-cigarro Cortina de Fumaça e Sem Fôlego (ambos de 1995) e o aclamado O Clube da Felicidade e da Sorte (The Joy Luck Club, 1993). Esse último, aliás, divide alguns temas com seu novo filme, Mil Anos de Orações (A Thousand Years Of Good Prayers, 2007).

O novo trabalho é também o mais sensível e maduro da Wang. De cara, a primeira cena já nos prepara para tanto: nela vemos malas caindo, uma a uma, na esteira rolante de um aeroporto nos Estados Unidos. Qualquer pessoa que já tenha viajado alguma vez na vida sabe a importância desse momento - é seu primeiro contato com uma nova cultura e pode ser ótimo (sua mala chega) ou um verdadeiro pesadelo (a bagagem extraviou). Por sorte, a mala do Sr. Chi (Henry O) está ali e, com a ajuda da filha (Faye Yu) que ele não via há vários anos, ele pode entrar tranquilo nos Estados Unidos, vindo da China. "Vim para ver o país em que você vive feliz", explica.

Imediatamente, porém, nota-se certo desconforto entre pai e filha. A tensão é desenvolvida nos silêncios do jantar, na maneira como ela levanta-se correndo da mesa para atender ao telefone, na ligação que ela não faz para avisar que chegará mais tarde... E cabe ao velhinho, engenheiro de foguetes aposentado, ex-membro do partido comunista, passar o tempo como pode, lutando com o aparelho de CD, vasculhando as gavetas, cozinhando, passeando no parque. É no espaço verde, aliás, onde ele conhece uma senhora iraquiana. Ele mal fala inglês, ela quase que só fala farsi, mas a comunicação é imediata e profunda. Dessas conversas ele tira coragem para discutir sua relação com a filha... e entender as razões da infelicidade dela.

A belíssima fotografia de Patrick Lindenmaier cuida para que cada momento tenha atrativos suficientes para manter a atenção - seja na meia-luz da sala da filha ou no bem iluminado parque. E a tensão familiar é tão bem construída que, aos poucos, naturalmente, vamos entendendo as raízes do problema e dividindo as angústias de pai e filha - buscando, como eles, a difícil reaproximação.

Wang, adaptando o romance de Li Yiyun, realiza assim um drama meticuloso, introspectivo, com ritmo lento mas cuidadoso, sem perder o interesse em momento algum. As diferenças (e semelhanças) entre China e Estados Unidos são exploradas com sutileza emocionante. Do fato do Sr. Chi atravessar o globo carregando sua wok para cozinhar, à insistência da filha em soltar frases em inglês durante as discussões ("quando se fala outra língua se é outra pessoa, é mais fácil expressar seus sentimentos"), à busca do frágil senhor por um lugar no mundo, ao hilário paralelo entre as profecias de Joseph Smith e os escritos de Marx e Engels... Mil Anos de Orações é um filme terno, modesto e inesquecível.