“É um curso natural da sociedade brasileira, e só vai aumentar”. O ator Bruno Gagliasso usa essas palavras para falar de Honestino, seu novo filme, e a forma como ele se conecta com o sucesso de Ainda Estou Aqui, Marighella e outros títulos dos últimos anos no audiovisual brasileiro. A conexão é clara: todos os projetos falam de desaparecidos e mortos do período da ditadura militar brasileira (1964-1985).
No filme de Aurélio Michiles, Gagliasso vive o líder estudantil Honestino Guimarães, que foi presidente da Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília (FEUB) e da União Nacional dos Estudantes (UNE) antes de ser preso em 1973, aos 26 anos, e nunca mais retornar. Só em 2013 foi oficialmente anistiado e recebeu um atestado de óbito completo, reconhecendo que faleceu nas mãos dos torturadores do Estado.
Honestino, que foi exibido ontem (9) no Festival do Rio 2025, ainda não tem data de estreia definida para o circuito comercial. Confira a seguir a conversa completa do Omelete com Gagliasso e Michiles.
OMELETE: Olá, Bruno e Aurélio, prazer em conhecer vocês! Sou o Caio.
GAGLIASSO: Oi, Caio, prazer!
MICHILES: Bom dia, Caio!
OMELETE: Eu queria começar perguntando pro Bruno – esse é um projeto que tem muita importância para você, a gente vê pelo jeito que fala dele. Então, o que essa história significa para você, como ator, como cidadão, e por que viver o Honestino é tão importante?
GAGLIASSO: É essencial! Eu escolhi ser ator, escolhi fazer arte justamente para poder discutir essas questões. E esse é um filme muito atual. A gente viu vários Honestino’s há pouco tempo, alguns dias atrás, na rua, sabe? É um filme muito presente, mas também um filme que fala de um filme de um passado recentíssimo. Os anos 1960, 1970 foram há pouco tempo atrás, e por muito pouco a gente não reviveu tudo isso agora. Esse filme serve como um alerta muito, muito claro para os jovens. A gente poderia ter passado por isso de novo, foi por muito pouco. Falar sobre o Honestino é um grande alerta para todos esses jovens, que não viveram essa época. Eu não vivi essa época, mas eu sei da importância que o Honestino teve, e é esse legado que eu quero deixar para os meus filhos, para a nova geração. É uma forma de manter a história dele viva, manter a história de várias outras pessoas que viveram essa época, junto com o Honestino, vivas. O Aurélio, que está aqui, conviveu com ele. Eu tenho certeza que esse filme tem um peso muito grande para ele, então fazer parte disso, para mim – não só como ator, mas como ser humano – é o que me faz vivo.
OMELETE: Eu ia perguntar justamente isso para o Aurélio – você foi contemporâneo do Honestino, e esse filme faz uma mistura de ficção e documentário, linguagens que vão se casando aí durante o filme. Como você fez a opção por essa estrutura, e como escolheu a forma de trazer a história dele para a tela?
MICHILES: Primeiro, eu queria dizer como é bom estar aqui conversando sobre um projeto que é projeto de toda a vida para mim. Eu convivi com o Honestino, porque cheguei em Brasília em 1968, era secundarista enquanto o Honestino já era uma grande liderança na universidade. E eu dividia um quarto com o Milton Hatoum, que hoje é escritor. Por uma série de eventos e coincidências, o Honestino ficou próximo da gente – talvez pela oportunidade de ter um lugar tranquilo, naquele momento da ditadura, onde se pudesse fazer reuniões clandestinas. O nosso quarto era usado para ter essas reuniões, e isso nos aproximou. Ele, sendo aquele líder universitário que parecia distante para um secundarista como eu, e Brasília vivendo uma efervescência cultural, um movimento estudantil muito forte. Com isso, me aproximei do Honestino, e… Enfim, isso marcou muito a minha vida, porque ele era uma pessoa muito especial e eu, como realizador, documentarista, sempre tive na linha do horizonte a ideia de contar a história dele. Mas nunca achei que eu conseguiria fazer, porque eu não sabia como contar essa história.
Até que um dia a Isaura, primeira esposa do Honestino, mandou para mim um vídeo do neto dele, Lucas, que tinha 13 ou 14 anos, fazendo um discurso na reinauguração da ponte que leva o nome agora do Honestino – Ponte Honestino Guimarães. Lá ele dizia que ouvia todo mundo falar do avô dele, mas gostaria mesmo era de ouvir do avô essas histórias, o que era impossível. Não só ele já tinha falecido, mas também era um dos desaparecidos, e isso era uma grande dor que atingia a família, as filhas e a sociedade brasileira. São brasileiros que continuam desaparecidos, foram sequestrados, assassinados, e nunca se prestou contas disso. Mas enfim, diante daquele vídeo eu vi que não podia mais fugir do projeto, porque o Lucas estava cobrando. Depois disso, eu fui conversando com Nilson Rodrigues, que é de Brasília, um exibidor e produtor de cinema também, e ele achou a ideia maravilhosa, ficou me incentivando a fazer o filme. Por fim, entramos no edital e ganhamos. Então, é um fato interessante – é a primeira vez que eu não levo 5 anos para fazer um filme, da decisão de fazer ao lançamento. Levou 1 ano!
GAGLIASSO: Mas, na verdade, levou muito mais, né?
MICHILES: É, verdade. Mas a questão dessa opção pelo formato híbrido, né, que mistura cena de ficção com documentário – acho que volta ao que o Bruno estava falando, de uma história que parece que é o passado, mas na verdade é o presente. Para mim, essa foi a melhor maneira de trazer esse passado para o presente, para que o Honestino não fique apenas num retrato amarelado ali, escondido no baú ou pendurado numa parede. Eu queria que a história dele fizesse parte do nosso cotidiano, porque esse filme não foi feito para minha geração, foi feito para a geração do meu filho e dos meus netos. Por isso que Honestino não poderia ser, de forma nenhuma, aquele documentário só de arquivos. Tinha que ter uma ponte onde as pessoas pudessem se identificar contemporaneamente à história. E eu não titubeei, a primeira ideia que eu tive foi misturar os formatos. Daí eu vi o Bruno, e pensei: esse cara parece com o Honestino, e tem uma postura parecida como cidadão também. O Bruno tem essa participação na sociedade, ele tem essa força, então achei uma combinação muito boa.
Eu vi ele participando, por exemplo, do filme do Marighella. Fazendo aquele vilão, aquele torturador sanguinário, violento, que representa todos os anos sombrios da ditadura – eu vi a força de um ator que não é aquilo se transmutando no seu algoz, sabe? Isso é muito interessante, é desafiador. Então achei que era o momento dele reverter isso e trazer esse outro lado mais solar para a tela.
Bruno Gagliasso em Honestino (Reprodução)
GAGLIASSO: Bom, me emociona ouvir o Aurélio falar sobre isso, porque o Marighella mexeu muito comigo. Foi muito forte, para mim, fazer um personagem racista, fascista. E quando veio o convite do Aurélio para estar do lado certo da história, me emocionou muito, e foi muito impactante no set. A gente se emocionou muito quando estava filmando. A gente fez esse filme lá na UNB, onde tudo aconteceu, e do lado do Aurélio, que viveu com ele. Foi muito forte, muito emocionante. Poder fazer isso através do meu trabalho, estar nos dois lugares diferentes – o lado da escória, e depois o lado certo – foi muito importante para mim, como ser humano, como ator. Saber que os meus filhos, quando estiverem mais velhos, vão poder assistir isso, saber que o pai deles fez alguma coisa através da arte, é muito, muito importante para mim.
OMELETE: Bom, o Aurélio mencionou a coisa dos desaparecidos da ditadura, e eu acho que a gente tem visto essas histórias sendo resgatadas mais recentemente no nosso audiovisual. Ano passado, obviamente, a gente teve Ainda Estou Aqui, mas de forma alguma é o único exemplo. Por que vocês acham que está acontecendo esse resgate agora, e qual a importância disso para vocês?
MICHILES: Primeiro de tudo, a história é oposição. A história não se admite ser esquecida, isso não existe. Pode levar 1.000 anos, mas a história vem e se revela. Essa é a grande mágica da nossa dinâmica civilizatória, da humanidade, né? A ditadura militar no Brasil foi violenta, foram 80 mil brasileiros presos, milhares mandados pro exílio, outros tantos torturados, e mais de quase 500 brasileiros assassinados e desaparecidos. Na UNB, por exemplo, tem três estudantes – o Honestino, e mais dois – que foram desaparecidos. Então essa é uma ferida, uma dor que é permanente. Não houve analgésico que solucionasse essa dor, ela permanece. A dor está nas famílias, e está na sociedade, porque ela atinge todo mundo.
Tanto é assim que aconteceu no Brasil, nos últimos anos, essa volta da questão da ditadura, que nunca havia sido solucionada. Gente pedindo o AI-5, gente pedindo a volta da ditadura, gente pedindo a intervenção militar – e tudo culminou com um cara na presidência que se mostrou violentamente antidemocrático, uma pessoa narcisista, sem qualificação intelectual para estar dirigindo uma nação, que fala palavrões… enfim, que tem características típicas do fascismo, né? Um regime onde o indivíduo e o cidadão são anulados, você passa a ser mera massa de manobra. E quando isso foi sendo colocado em prática, quando o Brasil foi se vendo diante dessa violência, os brasileiros passaram a sentir que algo estava faltando na sua história. Eu tenho impressão que, por exemplo, o filme do Walter Salles, vem dar uma resposta a essa insatisfação. O artista tem essa conexão com uma coisa que você não consegue explicar, ele lê necessidades coletivas, capta aquilo e responde.
Então, por que Honestino está acontecendo agora? É porque tem toda uma atmosfera exigindo saber o que aconteceu com nossos líderes. Honestino, se não tivesse sido assassinado, teria sido uma pessoa muito importante, teria assumido cargos importantes do país e teria contribuído mais ainda. Ele era uma pessoa altamente qualificada, tirou o primeiro lugar no vestibular de Brasília, era o melhor aluno de geologia – mesmo vivendo em clandestinidade até ser expulso, as notas dele eram notas máximas. O assassinato dele e o desaparecimento dele, criou esse váculo, que agora nós estamos tentando responder.
GAGLIASSO: Concordo 100% com o Aurélio falou. A história não pode ser apagada, ela não consegue ser calada. A prova disso são as Marielles, os Honestinos, os Marighellas. E a nossa função como artistas é colocar luz sobre essas histórias. Então, eu sinto que [esse resgate] é um curso natural do Brasil, por todos os motivos que o Aurélio falou. E vai ser cada vez mais, cara! Esse movimento está se ampliando, nos filmes que estamos fazendo, nos livros que estamos lendo. E isso está acontecendo porque as pessoas na rua estão exigindo, os jovens estão cada vez mais politizados. É um curso natural, e que só vai aumentar. E está certo, porque é nossa história e temos que nos apropriar dela.
OMELETE: Muito obrigado, gente. Parabéns pelo filme, viu?
MICHILES: Obrigado.
GAGLIASSO: Tchau, Caio.