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Filmes

Crítica

Joel Coen faz uma Tragédia de Macbeth mais próxima da comédia de erros

Cineasta revisita Shakespeare sem perder as características do seu cinema

18.01.2022, às 12H15.

A Tragédia de Macbeth é o primeiro filme de fato que o roteirista e diretor Joel Coen faz com sua esposa, a atriz Frances McDormand, sem a participação de Ethan Coen. (Ainda que Joel assinasse sozinho a direção dos filmes da dupla até 2004, ele sempre tinha o irmão Ethan ao seu lado, não creditado.) Isso contribui para dar ainda mais a essa adaptação de William Shakespeare um verniz autoral, como se Joel estivesse enfim pronto para solar e fazer seu filme mais pessoal, mais sério ou mais ambicioso.

Não é o que acontece na prática. Ao invés de descaracterizar o que se espera de um filme de Joel Coen, este Macbeth termina por realçar em retrospecto as qualidades que as tragicomédias dos irmãos sempre tiveram. Shakespeare também se aproveitou das zonas cinzas que cruzam a comédia com a tragédia, e escreveu pelo menos três peças que se enquadram nessa definição, mas Macbeth não é uma delas. Bem, o próprio título do filme diz se tratar de uma tragédia. O que se vê na tela, porém, é uma adaptação bem familiar para quem conhece o humor típico dos Coen.

Isso está tanto na direção e na fotografia quanto no próprio texto. McDormand interpreta Lady Macbeth e Denzel Washington faz seu marido, o personagem do título, general do Rei da Escócia que é convencido por uma profecia pagã e por sua própria vaidade a assassinar o rei e tomar-lhe o lugar. É uma peça famosa por tratar da corrupção do poder e, ao trazê-la para 2022 e ressaltar-lhe a rede de erros e absurdos, Joel Coen parece estar falando da Era Trump quando Denzel declama a frase mais célebre da peça: “A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada”.

Desde o começo da carreira, os irmãos Coen se inclinam para história de homens cuja modéstia trai a si mesma e, numa combinação mortal de apetite e desinteligência, ocasiona uma bola de neve de acasos, desencontros e confusões. Não por acaso Joel e Ethan vira e mexe retornam ao policial noir onde começaram, gênero onde esse tipo de conto moral sobre desejo e corrupção melhor se manifesta. Pois em Shakespeare, o que Joel faz é salientar os desencontros: sabemos que Macbeth está condenado, mas isso se dá no filme menos pelo destino e mais por uma sucessão de infortúnios.

É isso que acaba aproximando da comédia essa adaptação, ou pelo menos da comédia trágica como a conhecemos pelo olhar dos Coen. O destino se abate sobre os homens, sim, inclusive esse “destino” parece estar fisicamente no filme, nas muitas câmeras colocadas de modo vertical sobre as cabeças dos personagens, como os corvos que sobrevoam Macbeth à espera dos deslizes. Mas ao destino se soma o absurdo teatro do azar que é tão típico dos Coen: um plano mal executado, um objeto esquecido na cena do crime, os sobreviventes imprevistos, um improviso em cima de outro improviso que vão se acumulando como uma bomba-relógio. 

Ao mesmo tempo em que ressalta no texto esses desencontros, Joel Coen esmaga na encenação a pretensa grandeza dos homens. Seu filme, enquadrado em 4x3, está cheio de momentos que apequenam os personagens, seja nos close-ups em grande-angular, no tamanho desproporcional dos cenários, ou na solução claustrofóbica de conceber esses cenários como becos sem saída ou vias de mão única (mesmo nas externas, como a floresta estreita ou a murada do castelo). Já se falou que A Tragédia de Macbeth, nas suas escolhas de câmera e de cenografia, lembra tanto o expressionismo alemão quanto o estilo de filmar do dinamarquês Carl Dreyer - duas tradições de cinema que valorizavam demais um senso de escala para colocar o homem em seu devido lugar diante de Deus e do insondável - e Joel Coen está aqui basicamente fazendo um estudo sobre escala também.

O cinema dos Coen pode ser terrivelmente teológico quando pega emprestado da tradição judaica essa ideia de que Deus paira acima de nós para manter o homem fixo ao chão, humildemente ciente de sua condição. Isso resulta às vezes em filmes cheios de cinismo, como Um Homem Sério (2009), e talvez o que impeça A Tragédia de Macbeth de ser também um relato cínico sobre poder é que Joel investe com muita energia e disposição nesse exercício formal, sondando o minimalismo para encontrar formas modernas de oxigenar pelo cinema um material tantas vezes já adaptado. Trata-se de um filme bastante teatral - tanto no inglês arcaico quanto na economia de cenários - mas ao mesmo tempo muito cinematográfico, e nesse esforço de encenação não deixa de pulsar uma certa força de… otimismo.

Nota do Crítico
Ótimo