Justiceiras/Netflix/Reprodução

Filmes

Crítica

Justiceiras navega entre clichês teens (e a psicopatia) sem cair no maniqueísmo

A busca por vingança, embora divertida e surpreendente, deixa a desejar ao não assumir o preço das consequências

16.09.2022, às 17H50.

Justiceiras poderia fazer da sua amálgama de referências a sua razão de ser, como tantos outros títulos nos últimos anos. No entanto, evocar a nostalgia é apenas a intenção mais aparente da comédia de Jennifer Kaytin Robinson. Ao mesmo tempo que homenageia filmes tão familiares, desde sua escolha de figurino até cenas inteiras, a diretora e roteirista brinca com a percepção dos espectadores de que essa é só mais uma história — e, pior, fútil e banal — com uma lição a ensinar. Contudo, a busca por vingança da ex-rainha da escola Drea e da recém-transferida Eleanor, vividas respectivamente por Camila Mendes e Maya Hawke, é bem menos moralista ou maniqueísta. Na realidade, suas protagonistas são (quase) tão tóxicas quanto seus antagonistas, e esse toque de crueldade torna tudo mais divertido.

À primeira vista, Drea e Eleanor não parecem nada compatíveis. Enquanto uma é a clássica patricinha egocêntrica, a outra prefere ser uma tomboy alheia a qualquer burburinho de popularidade. Contudo, as duas têm muito mais em comum do que qualquer um poderia imaginar, a começar pelo fato de ambas se sentirem inseguras naquela escola particular luxuosa. Drea teme perder sua posição de poder por não vir de uma família absurdamente rica, como o restante do corpo estudantil. Já Eleanor é lésbica, e sair do armário na pré-adolescência foi uma experiência traumática o suficiente para que ela se isolasse. Mas, quando Drea se torna vítima de revenge porn e todo mundo, inclusive suas amigas, acreditam na palavra do seu agressor, Max (Austin Abrams), é o desejo de vingança que as une.

Com um plano que repagina a trama de Pacto Sinistro — nenhuma delas chega a mencionar Hitchcock, mas se tratando de adolescentes que citam Dante Alighieri em conversas casuais, não seria estranho se esse fosse literalmente seu ponto de partida —, as duas decidem executar uma a retaliação da outra. Em outras palavras, fica combinado que Eleanor vai se infiltrar entre os populares e tentar expor todos os podres de Max, e Drea vai dar um jeito de fazer a ex da nova amiga pagar por mentir e tratá-la como uma predadora.

Em muitos sentidos, Justiceiras é uma espécie de sucessor espiritual de Meninas Malvadas. As duas comédias compartilham um senso de humor ácido e um olhar quase paródico para situações cotidianas das produções teens. Mas se Tina Fey não economizou nas comparações com a savana para dar a dimensão da selvageria do ensino médio, Robinson deixa a brutalidade para suas protagonistas e faz dos clichês do gênero uma piada dentro de si mesmo. Quando chega à escola e lhe perguntam se gostaria de um tour, por exemplo, a resposta de Eleanor literalmente é "como fã de filmes adolescentes dos anos 90, eu ficaria ofendida se não ganhasse um". Da mesma forma, quando Drea propõe um plano mirabolante e o chama de “óbvio”, Robinson ri do fato de que esse tipo de estratégia só soa imediato para quem trabalhou naquele roteiro por meses.

Nesse ponto, a diretora deixa suas referências e inspirações bem explícitas. Meninas Malvadas é, definitivamente, a principal delas. Ela aparece no plot de uma vingança que parte de uma discriminação entre antigas amigas, na transformação de Eleanor para atender aos padrões da realeza estudantil e na predominância dos tons pastéis. Mas há também espaço para os filmes dos anos 1990: As Patricinhas de Beverly Hills, por exemplo, está representado no uniforme e na moda noventista, atualmente em voga; 10 Coisas que Odeio em Você é uma memória imediata quando começa o já citado tour pelo pátio; e, como se isso já não bastasse, a atriz Sarah Michelle Gellar é a diretora da escola. Quer dizer, Justiceiras não tem embaraço algum de brincar com a ideia de que pode ser uma comédia derivativa, porque, no fundo, sabe que não é.

Para além do que está no território de spoilers — que me limito a descrever como surpresas escondidas bem à vista e uma escalada que beira a psicopatia —, há um cuidado muito claro em se comunicar com os adolescentes de hoje. Por isso, todo o elenco é composto por nomes já conhecidos e celebrados pelo público deste nicho, a começar pelas suas protagonistas: Mendes, que faz um excelente trabalho em Justiceiras, está há anos no ar com Riverdale,e Hawke é destaque em Stranger Things desde sua chegada à série. Há, ainda, Abrams, interpretando (muito bem) uma figura canastrona e diametralmente oposta do seu Ethan em Euphoria; Alisha Boe, de 13 Reasons Why, como uma ex-amiga traíra; e Rish Shah, de Ms. Marvel, como o mais bonzinho entre tantos alunos vis.

Mas, fora a preocupação com as tendências, há atualizações de fato relevantes. O totem da popularidade nessa escola não é mais um atleta, e sim um jovem autodeclarado feminista que, por trás da pose de sensível, se revela o ápice do machismo. Consequentemente, a trama do revenge porn, em toda a sua perversidade, não poderia ser mais condizente com a realidade do público de casa. Quer dizer, as reformulações não necessariamente quebram as dinâmicas clássicas do gênero, mas as apresentam com um olhar moderno — intenção que fica ainda mais óbvia na trilha sonora, que mistura "Bitch", de Meredith Brooks, com “brutal”, da Olivia Rodrigo.

Nesse sentido, é uma pena que o mesmo cuidado não se repetiu ao assumir as consequências da vingança que, neste caso, extrapolaram e muito o que Regina George sofreu. Porque, por mais que seja inegável que o entretenimento esteja no seu caráter escandaloso — que, aqui, serve tanto para o humor, quanto para frisar o direito das mulheres serem também “c*zonas” —, uma dose a mais de responsabilidade e bom senso não faria mal.

Nota do Crítico
Bom