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Crítica

Crítica: Munique

Munique

26.01.2006, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H19

Um dia, Steven Spielberg - na forma de seu alter-ego Roy Neary em Contatos imediatos do terceiro grau (1977) - decidiu trocar a família por um passeio numa nave extraterrestre. Provavelmente ele não faria essa escolha hoje. Com os anos, seus filmes amoleceram, se impregnaram da apologia do lar ou, inversamente, mostravam o peso que a falta de laços de sangue provoca. Munique (Munich, 2005) fala de identidade, de raízes - e fala de família.

Munique

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O filme se inspira livremente em um trauma histórico. Retrata o ataque do movimento islâmico Setembro Negro que resultou na morte de onze atletas da delegação israelense durante os Jogos de 1972. A ofensiva à vila olímpica também custou a vida de cinco dos oito terroristas palestinos. Três foram presos. A trama se concentra na caçada assassina liderada pela polícia secreta de Israel, o Mossad, aos idealizadores do Setembro Negro. É uma história de vingança.

O agente do Mossad Avner Kaufman (Eric Bana, de Tróia, Hulk) estava ao lado da mulher grávida quando soube pela TV do atentado. Avner é filho de um herói israelense, e a primeira-ministra Golda Meir (Lynn Cohen) faz questão de lembrá-lo disso quando pede ao agente que lidere o contra-ataque. Na vida real, Golda Meir é uma heroína santa do sionismo; Spielberg a retrata como uma mulher de raciocínio pontiagudo. Você é filho de um herói, mas tem as feições da sua mãe, provoca ela. Até aquele momento, Avner vacilava em aceitar a missão. Mas se ele tinha algum desejo freudiano de superar o legado do pai, foi despertado na hora.

Começa então a caçada pela Europa atrás de onze cabeças árabes - mas, para isso, Avner precisa deixar de existir. Publicamente o Mossad não pode pôr em risco seu nome. O agente é desligado da instituição, tem eliminados seus direitos de cidadão (seguro, previdência, pensão) e passa a agir clandestinamente, financiado por fora pela polícia secreta. Avner segue judeu, mas não mais israelense, oficialmente. Juntam-se a ele cinco homens: o perito em explosivos Robert (Mathieu Kassovitz, de A isca perfeita), o brutamontes Steve (Daniel Craig, o novo Bond), o contador Hans (Hanns Zischler) e o meticuloso Carl (Ciaran Hinds, o César de Roma), espécie de Mr. Wolf do grupo.

Sombra e reflexo

Spielberg se esforça para fazer, a partir daí, um thriller que faz pensar, mas sem dispensar o espetáculo. Seu lado blockbuster aflora no perfeccionismo das cenas movimentadas, no planejamento de um ataque, na explicação dos gatilhos de uma bomba, no corre-corre e no tiroteio. Mas nos intervalos tudo isso parece ter valido nada: na televisão (sempre com imagens reais de arquivo), o noticiário informa sobre novos atentados terroristas. Para cada árabe que Avner mata, outro o substitui, mais rancoroso, mais brutal. Acossado, o judeu começa a questionar tudo.

A opção do diretor pela reflexão, mais do que pela ação, fica muito clara no belo pôster. Aquele enquadramento, do personagem no escuro do primeiro plano, diante do fundo iluminado, se repete bastante ao longo do filme. O que se vê, em boa parte das 2h40 de duração, são vultos. Do mesmo modo, outro recurso recorrente de câmera é captar cenas através de vidros e espelhos, pelo retrovisor de um carro, a janela de um avião ou a vitrine de uma loja. Avner é uma mera sombra (do israelense tornado clandestino, do pai) e é um mero reflexo (da violência cíclica). Ou seja, ele não é alguém.

Não é, mas procura ser. Há mais de uma maneira de se perseguir uma identidade. Para os árabes, essa busca acabará no dia em que a Terra Santa for conquistada. Muitos dizem que o filme é bonzinho com os terroristas (na verdade, a comunidade judaica fez um estardalhaço desmedido a respeito), mas o diretor de A lista de Schindler não faz mais do que reconhecer o desejo dos palestinos, o desejo de criar raízes, ter uma pátria, ter fronteiras.

Que se abra um espaço aqui para elogiar a colaboração no roteiro do estreante em cinema Tony Kushner, ganhador do prêmio Pulitzer e do Tony Award por Angels in America. Desde já um dos melhores escritores de diálogos em atividade em Hollywood, Kushner impregna as situações mais triviais de duplos sentidos. Como ótimo exemplo, o momento em que o informante de Avner, Louis (Mathieu Amalric, o Ismaël de Reis e rainha), diante de uma loja de artigos de cozinha, aconselha o agente a não perder a cabeça: Junte dinheiro, compre a cozinha, ela é cara, mas casa é uma coisa cara mesmo. Casa, terra, preço, luta, tudo envolve uma mesma simbologia.

Acontece que para Avner a busca de uma identidade já deixou de envolver a questão da terra, da pátria. Uma vez renegado por Israel, uma vez desenraizado, o judeu se vira - finalmente - para a família. Ela o acompanha, sem que ele perceba. São recém-casados hospedados no mesmo hotel dos agentes. São crianças, por todo lado. É a fidelidade conjugal que, a certa altura, lhe salva a vida. É ouvir o choro da filha pela primeira vez, mas no telefone. É a família no sentido fraterno, do papa que não vende o alvo por enxergar ali um segundo filho. Aparentemente banal, a cena redentora da semeadura do jardim, quase no final do filme, é emblemática. Avner enfim aprende que a casa não é uma bandeira. A casa é onde o coração está.

Não que isso baste, não que isso resolva o conflito entre muçulmanos e judeus, mas para começo de conversa - neste que é o melhor filme de Spielberg na última década, talvez o mais contundente e maduro da sua carreira - já é um grande alento.

 

Nota do Crítico
Excelente!