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Crítica

Benedetta une sexo e flagelo como jogo de poder para criticar o fundamentalismo

Paul Verhoeven transposta mais uma de suas transformações de horror pra a Igreja no século XVII

12.01.2022, às 19H06.

A nossa crise de empatia - que antes disso talvez seja primeiro uma crise de abstração - chegou a tal ponto que as pessoas estão mesmo levando a sério a discussão absurda de A Filha Perdida estar interditado para o público masculino. Como se o filme de Maggie Gyllenhaal não falasse de maternidade de um jeito absolutamente direto e transparente, para qualquer pessoa disposta a prestar o mínimo de atenção.

Pensei em A Filha Perdida porque Benedetta já é um caso diferente, e mais insidioso. No papel, é um filme tão feminino quanto possível: trata de um amor lésbico entre mulheres que não podem se assumir como tal. A ficcionalização da história real de Benedetta Carlini se passa num convento italiano do século XVII mas a freira sofre as penitências impostas socialmente como mulheres em patriarcados de qualquer outro tempo. 

Por outro lado, Benedetta não deixa de ser absolutamente masculino, porque nos filmes de cunho sexual e político do diretor Paul Verhoeven as dinâmicas de poder ocupam quase sempre um lugar central. São filmes onde o masculino pode se revelar feminino e vice-versa, inclusive a tensão frequentemente vem dessa transição. Por meio dela, Verhoeven desmistifica o tabu do sexo, ainda que não revogue os simbolismos que os gêneros trazem consigo (o masculino como a força, o feminino como a vulnerabilidade).  

Esse jogo sexual de poder seria minimizado no lesbianismo, cuja dinâmica é idealmente igualitária, não fosse o cinema de Verhoeven tão dependente do falo para articular seu pensamento (sobre, entre outras coisas, o empoderamento feminino). Em Showgirls (1995), Nomi se impõe não no feminino, mas no masculino, desde o momento em que a dançarina toma vulgarmente o mastro para si. Em Instinto Selvagem (1992), o clímax não deixa de ser um duelo de forças entre dois masculinos, o de Michael Douglas e o objeto fálico que é o picador de gelo da fatal Sharon Stone.

Verhoeven convida a essa interpretação porque, enfim, é inconfundível a iconografia do falo nos seus thrillers sexuais, sejam as pistolas Luger do exército alemão em A Espiã (2006), seja o controle do game ou a machadinha em Elle (2016). Não é exatamente um fetiche da arma - tanto que Tropas Estelares (1997) coloca juntos e nus no vestiário homens e mulheres lindos e atléticos mas eles só têm tesão pela guerra - mas antes um reconhecimento de que a tensão sexual nasce não da cumplicidade e da igualdade, mas do atrito e da diferença. 

Parece irônico então que, nas entrevistas sobre Benedetta desde o Festival de Cannes do ano passado, Verhoeven se diga surpreso quando a imprensa martela tanto a questão do dildo das duas lésbicas. (Não vou explicar aqui o que é o masturbador usado no filme, por uma questão de spoiler e também porque o leitor provavelmente já sabe do que se trata.) De qualquer forma, com ou sem o falo, com ou sem lesbianismo, as dinâmicas de força estão no centro de Benedetta, e inclusive enformam a ideia crítica que Verhoeven faz do fundamentalismo cristão como uma apologia da violência.

Desmarginada

Holandês nascido em 1938, Verhoeven viveu na infância os anos da ocupação nazista no seu país e transfere até hoje para seus suspenses persecutórios um estado permanente de alarmismo, ditado pelas regras do mais forte. Quando sonha com Jesus no filme, Benedetta não vê o homem que dá a outra face, mas o cavaleiro que, com sua espada afiada, protege à força o mundo de todo tipo de ameaça. A violência sagrada e consagrada é uma ideia que Verhoeven trabalha como tragédia pelo menos desde RoboCop (1987), filme notoriamente entendido por parte da crítica como uma alegoria do Calvário.

O que Benedetta tem de mais instigante, do ponto de vista da controvérsia, é a sugestão de que nossas fantasias, tanto as religiosas quanto as sexuais, são definidas na cultura cristã pela métrica do flagelo. O masturbador se torna central no sexo lésbico não apenas para dar conta de uma presença masculina - que faz desse sexo algo mecânico, instrumentalizado - mas principalmente para validar a relação num contexto de penitência. Quando, mais tarde, Verhoeven apresenta outro falo como um instrumento de tortura, isso se presta a consolidar no filme a noção de que a penetração pode ser também um gesto de subjugação.

Que a realidade encarcerada do convento e o regime diário de sacrifícios transformem então o que seria um ato de amor entre duas mulheres em uma forma de apagamento do Outro é a melancólica constatação a que chega Benedetta - um filme onde as pessoas não viram o rosto quando alguém se autoflagela diante delas. Aliás, elas talvez até tirem disso uma secreta satisfação, da mesma forma que um filme ultradogmático como A Paixão de Cristo (2004) encena o castigo com prazer inconfesso.

A exemplo da judia holandesa que conseguiu sobreviver ao Holocausto em A Espiã emulando o masculino dos seus opressores e se apoderando dos signos de violência do regime nazista, Benedetta Carlini transforma a cultura do pavor e da mistificação nas suas armas. O grande mistério que persiste até o desfecho - afinal, quando os estigmas surgem em seu corpo, a freira está fingindo ou o milagre é real? - equivale a questionar se Benedetta ainda pode conservar sua integridade depois de aderir ao teatro da violência, assim como a heroína de A Espiã.

Desses dilemas dependem nada menos que a esperança na humanidade. Torcemos para que Benedetta esteja fingindo no filme porque, em boa medida, isso significa que ela ainda guarda algo de si mesma, depois das transmutações a que se sujeita para jogar o jogo que lhe foi ensinado. Filme que opera no terreno do fantástico de modo transversal (o que são os efeitos da peste negra senão material visual de uma fábula de horror), Benedetta submete o corpo da atriz Virginie Efira a uma transformação monstruosa bem típica dos filmes de Verhoeven, ainda que sutil - da freira frágil toda coberta, no início, ela até parece ganhar mais estatura quando nua, e durante as possessões sua voz não seria outra senão uma rouquidão aterrorizadora.

A escritora de A Filha Perdida, Elena Ferrante, criou um neologismo, desmarginação (em italiano, “smarginatura”), para definir o momento em que suas personagens femininas se perdem de si, num transe similar a uma queda de pressão em que os próprios contornos do corpo parecem se desfazer. Não é uma figura de linguagem rara na literatura feminina, e a própria Ferrante reconhece ver uma versão anterior da sua desmarginação na obra da brasileira Clarice Lispector. Por sua vez, por ser homem, Paul Verhoeven não faria outra coisa senão contar histórias no masculino, mas ele também tem sua própria ideia de desmarginação do corpo, que se aplica democraticamente a homens e mulheres.

O desfecho de Benedetta lembra um pouco um clássico da desmarginação no cinema, o final do filme italiano Stromboli (1950), em que Ingrid Bergman também se perde de si na luta entre aderir ou não a um sistema de ordem dogmática para sobreviver. Bergman se envolve desesperada na fumaça do vulcão, chamando por Deus, enquanto Benedetta observa a fumaça com uma serenidade quase insensível, desumana. Nunca saberemos se ela mentia ou não sobre os estigmas, porque para Verhoeven não é exatamente essa resposta que importa, e sim manter sempre a esperança de que a desmarginação não desfigure por completo essa mulher, transformada em homem, em símbolo e em máquina.

Nota do Crítico
Excelente!